Filosofia Política: A Questão da Justiça de Acordo com “A República” de Platão
O presente trabalho traz algumas reflexões resumidas sobre a questão da justiça na vida política e social de acordo com os diálogos de Sócrates com os sofistas Polemarco, irmão do famoso orador Lísias, e Trasímaco; e com os irmãos de Platão: Gláucon e Adimanto.
DIÁLOGO ENTRE SÓCRATES E POLEMARCO
Sócrates juntamente com Céfalo, pai de Polemarco discutem a definição de justiça, e o filósofo grego afirma que a justiça não pode ser simplesmente “dizer a verdade a restituir aquilo que se tomou”. Neste instante Polemarco diz que justiça significa exatamente isso, pois se deve dar crédito a Simónides, um poeta lírico grego, que dizia “que é justo restituir a cada um o que se lhe deve”
Primeira tese defendida por Polemarco: “É justo restituir a cada um o que se lhe deve”.
Esta tese seria atribuída a Simónides, o maior poeta lírico grego. Sócrates responde fazendo uma pergunta a Polemarco: “se uma pessoa estiver privada da razão e nos emprestar uma arma, devemos devolver-lha?” Assim, para Sócrates, houve uma interpretação errada do que disse o poeta, pois a justiça consistiria em restituir a cada um o que lhe CONVÉM, e a isso Simónides chamou de restituir o que é devido.
Segunda tese defendida por Polemarco: “A justiça consiste em amar e fazer bem aos amigos, e odiar e fazer mal aos inimigos”.
Sócrates responde que em primeiro lugar é preciso definir o que significa “amigos”. Para Polemarco amigo é aquele que parece honesto. Então se deveria fazer justiça e amar àqueles que parecem honestos, e odiar a quem aparentaria ser mau. Esta afirmação atribuída a Simónides seria de Periandro (tirano de Corinto), Pérdicas (rei da Macedônia), de Xerxes (rei da Pérsia) ou de Ismênias de Tebas. Porém, dizia Sócrates, “que os homens podem errar em seu juízo sobre os homens; de maneira que lhes pareçam honestos muitos que não o são, e vice-versa”. Assim, os bons seriam inimigos, e os maus, amigos. Desta forma, muitos poderiam prejudicar os amigos, e ajudar os inimigos indeliberadamente. Portanto seria preciso definir melhor o que significa “amigos”, pois para Sócrates amigo é aquele que realmente é honesto e não simplesmente alguém que aparenta sê-lo. E sobre o inimigo a definição seria a mesma.
Então, Sócrates conclui que seria próprio do homem justo fazer mal a qualquer espécie de homem, já que pode se enganar, e Polemarco concorda.
Sócrates pergunta a Polemarco se quando se faz mal a cavalos, eles se tornariam melhores ou piores? Ele responde que seriam piores do que antes. Então quanto aos homens, não teria que se dizer o mesmo? Polemarco se convenceu afirmativamente. Então Sócrates volta a perguntar: “Mas a justiça não é a perfeição dos homens?” Polemarco respondeu que sim. Então os dois concordaram que os bons não podem tornar outrem mau, por meio de sua perfeição, pois a ação do calor não é refrescar, nem a da secura umedecer, mas o contrário. Nem tão pouco a do homem bom fazer o mal. Então o homem justo é bom. Logo, fazer mal não poderia ser a ação de um homem justo, quer seja a um amigo, quer a qualquer outra pessoa. Portanto, afirma Sócrates: “se alguém disser que a justiça consiste em restituir a cada um aquilo que lhe é devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos, quem assim falar não é sábio, porquanto não disse a verdade. Efetivamente, em caso algum nos pareceu que fosse justo fazer mal a alguém”. Polemarco concordou com esta afirmação, e chegou à conclusão que estava errado em defender sua tese de que “A justiça consiste em amar e fazer bem aos amigos, e odiar e fazer mal aos inimigos”.
DIÁLOGO ENTRE SÓCRATES, TRASÍMACO, GLÁUCON E ADIMANTO
Primeira tese defendida por Trasímaco: “A justiça não é outra coisa, e em toda a parte, senão a conveniência do mais forte. E como os governos têm o poder (sendo os mais fortes) seria justo para eles aquilo que lhes convém, castigando assim aqueles que seriam os injustos, os que violam as leis, os transgressores”.
Sócrates responde que em primeiro lugar é preciso examinar primeiro a questão da conveniência e se os governantes podem cometer erros. Se o governo pode errar na promulgação das leis, e sendo justo que os súditos façam o que os governantes lhes prescrevem (afirmação também defendida por Trasímaco), então os governantes podem, involuntariamente, tomar determinações inconvenientes para eles mesmos.
Sócrates faz uma comparação com a arte da medicina, dizendo que esta não deve procurar a conveniência dela mesma, mas a do corpo; nem a equitação a da equitação, mas a dos cavalos; nem o piloto a do piloto, mas a dos marinheiros, e assim por diante. Então, Trasímaco é levado a concordar que as artes governam e dominam aquele a quem pertencem. Portanto, nenhuma ciência procura ou prescreve o que é vantajoso ao mais forte, mas sim ao mais fraco e ao que é por ela governado, pois nenhum médico, na medida em que é médico, deve procurar ou prescrever o que é vantajoso ao próprio médico, mas sim ao doente, pois é o médico governa os corpos, não aquele que faz dinheiro com eles. Trasímaco concordou com isso. Assim, concluiu Sócrates que nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que é chefe, deve examinar ou prescrever o que é vantajoso para ele mesmo, mas o que é para seu subordinado, para o qual exerce sua profissão. “O verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela de seus súditos”.
Sócrates também afirma que “os homens de bem não querem governar nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem ser apodados de mercenários, exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem de ladrões, tirando vantagem de sua posição”.
Segunda tese defendida por Trasímaco: “Em toda parte, o homem justo fica em uma posição de inferioridade em relação ao homem injusto. A injustiça é mais vantajosa que a justiça. Portanto é melhor a vida do injusto do que a do justo”.
Trasímaco crê que a justiça é uma sublime ingenuidade, e chama a injustiça de prudência, algo bom, inteligente, forte, belo, colocando-a no grupo da virtude e sabedoria. Assim a justiça ficaria no grupo contrário.
Para Trasímaco a pessoa justa não quer exceder o seu semelhante, mas o seu oposto; ao passo que o injusto quer exceder tanto o seu semelhante como o seu oposto. Então, seguindo o raciocínio de Trasímaco, na relação entre o músico (o sábio na arte da música) e o não músico (o ignorante na arte da música), seria correto e coerente ao músico ultrapassar somente ao não músico, e nunca seu colega, que tem os mesmos conhecimentos que ele. O mesmo ocorreria com o médico, que poderia ser superior (em termos de medicina) somente a um não médico. Seguindo este raciocínio, não seria coerente a um não médico (ignorante na arte da medicina) querer ultrapassar um médico (sábio na arte da medicina) nesses conhecimentos. Como ambos concordaram com esta afirmação, fica claro que o justo deveria se revelar como bom e sábio, e o injusto como ignorante e mau, e não foi isso que Trasímaco afirmou. Assim, através da maiêutica, Trasímaco se viu obrigado a concordar que estava errado, pois se insistisse em sua tese, cairia em contradição com que havia falado anteriormente. Portanto Sócrates afirma que ambos concordam que “justiça é virtude e sabedoria, e injustiça maldade e ignorância”.
Terceira tese defendida por Trasímaco: “A injustiça é mais poderosa, mais forte do que a justiça”.
Tese defendida por Gláucon: “Todos praticam a justiça contra a vontade, mas não como coisa boa, pois a vida do injusto seria melhor do que a do justo”.
Tese defendida por Adimanto: “Os pais recomendam aos filhos, bem como todos aqueles que têm alguém a seu cargo, a necessidade de ser justo, apenas para receber honras e vantagens. Felizes são os maus se forem ricos ou possuidores de outras formas de poder, e forem honrados em público e particular. Os próprios deuses atribuíram a muitos homens de bem infelicidades e uma vida desgraçada, e aos maus o contrário.”
Sócrates e Trasímaco concordam que a injustiça parece ter uma força tal, em qualquer entidade em que se origine – quer seja um estado qualquer, nação, exército ou qualquer outra coisa – que, em primeiro lugar, incapacita-a de atuar de acordo consigo mesma, devido às dissensões e discordâncias; e, além disso, tornam-se inimigas de si mesma e de todos os que lhe são contrários (mesmo dentro do grupo de injustos) e que são justos. Assim, se existir num só indivíduo, produzirá segundo julga o filósofo, os mesmos efeitos que por natureza opera. Em primeiro lugar, torná-lo-ia incapaz de atuar, por suscitar a revolta e a discórdia em si mesmo; seguidamente, fazendo dele inimigo de si mesmo e dos justos. Os justos se mostram mais sábios, melhores e mais capazes de atuar, ao passo que os injustos nem sequer são capazes de atuar em conjunto, pois não se poupariam uns aos outros.
Sócrates diz que os justos têm uma vida melhor e são mais felizes que os injustos. Tudo o que é privado de sua virtude própria não pode desempenhar bem a sua função, pois só existe uma virtude se uma função é bem realizada. Assim, por exemplo, a função dos olhos é ver, e a dos ouvidos é ouvir, pois não é possível ver com outra coisa que não sejam os olhos, e ouvir com outra coisa que não sejam os ouvidos. A função da alma é superintender, governar, deliberar e todos os demais atos da mesma espécie. Assim, quem tem uma alma boa governa e dirige bem, ao passo que tem uma má, faz tudo isso ao contrário. Logo a alma justa e o homem justo viverão bem, e o injusto mal. O homem justo é feliz, e o injusto é desgraçado. Desta forma, o poder e a vantagem só podem estar na justiça e não na injustiça.
Rogério de Paula e Silva
Disciplinas isoladas – Filosofia
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 11ª. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
há 11 anos atrás
Excelente interpretação. Resumidamente bem colocado aqui os diálogos em A República, de Platão com o que se discutia o valor do justo sobre o injusto, da justiça sobre a injustiça. Parabéns!