Arquivo de outubro 2008
Diario de Bordo – 04
03/10/08
E cá estamos para mais um diário de bordo, hoje navegando na poesia e obra de filósofo alemão Martin Heidegger… Vamos nessa…
Mais >
O Meu Olhar
03/10/08
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender …
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
{Alberto Caeiro} – O Guardador de Rebanhos – 08/03/191
Prof. Dr. Renato Kirchner
02/10/08
Prof. Dr. Renato Kirchner é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007), mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999), graduado em Filosofia pela Universidade São Francisco (1991). Atualmente, é professor doutor da Universidade São Francisco, atuando nos cursos de Educação Física, Tecnologia em Logística e Administração. De 1992 a 1994 cursou Teologia no Instituto Teológico Franciscano (ITF), Petrópolis. Concursado, em 1997, como professor substituto na área de Metafísica e Filosofia Contemporânea do Departamento das Filosofias e Métodos da Universidade Federal de São João Del Rei. Trabalhou nos departamentos editorial, de editoração e de desenvolvimento gráfico da Editora Vozes de 1992 a 2002. Desde 2003 é editor-coordenador da Editora Universitária São Francisco (EDUSF). Sócio da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) desde 2005 e representante da EDUSF na Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU) desde 2003. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Teoria do conhecimento, Metafísica, História da Filosofia, História das Idéias modernas e contemporâneas, atuando principalmente nos temas: tempo, temporalidade, história, historicidade, antropologia e sociologia contemporâneas, teologia, franciscanismo, medievalística. Tem ampla experiência profissional de editoração e produção cultural. É conselheiro ad hoc da revista Educação e Filosofia, da Universidade Federal de Uberlândia. Pertence ao grupo “Filosofia e franciscanismo”, na linha de pesquisa “Filosofia, teologia e espiritualidade franciscana” e ao grupo “Franciscanismo e medievalísticado”, na linha de pesquisa “Tradição humanística, filosófica, teológica e espiritual do franciscanismo”, vinculados ao Instituto Franciscano de Antropologia (IFAN), sob coordenação de Alberto da Silva Moreira. Desde 2003, juntamente com Enio Paulo Giachini, coordena a col. Pensamento Humano, anteriormente coordenada por Emmanuel Carneiro Leão e editada pela Vozes. Para mais informações, clique aqui.
A poesia impede a dissolução dos rostos
02/10/08
Querem que as pessoas comecem por se conhecer bem. Mas se o ser humano fosse vocacionado para o conhecido, acasalaria com irmãos, tios, primos, com os gatos. Que nem por isso parecem particularmente íntimos uns dos outros.
Trata-se de um processo lento, profissional, quase inperceptível: um dia um amigo abandona-nos e encolhemos os ombros, um dia descobrimo-nos cáusticos por tudo e deslumbrados por nada, um dia a própria palavra deslumbramento nos dá vontade de rir, um dia a febre da melancolia transforma-se na enxaqueca do tédio, um dia chamamos pudor ao pavor e juramos que nunca mais havemos de chorar.
Os poetas sobrevivem a estas juras, pela arte que têm em escapar às fronteiras epistemológicas que isolam essências e aparências. E pela contínua vigilância sobre a corrosão das palavras. O seu trabalho intelectual parte da ousadia de se expor sentindo. Entendem que a fraude é um bicho carnívoro e não um animal doméstico que podemos amimar ou dispensar. Fazem da escrita uma fórmula infinita de multiplicação da vida, morrem e ressuscitam vezes sem conta em busca da palavra, a canção ligeira sobre música séria onde cintila o sangue desse movimento de passagem. Têm coragem de manter a alma adolescente, velha, cheia de musgo e de rasgões. Sabem que a vulnerabilidade é o preço a pagar pelo luxo de uma aparição. Sabem que quem mente ao que é cai do primeiro degrau da escada da eternidade.(…)
A poesia impede a dissolução dos rostos, nomeia-os e descreve cada uma das suas sombras, fragilidades, desejos e sonhos. Nesse sentido é uma barragem contra a desumanidade, fixando o”acontecimento” ético- normalmente intermitente-do súbito encontro de um rosto-o rosto inesperadamente humano do inimigo em que se tropeça no campo de batalha, de que falava Emmanuel Lévinas.
{Inês Pedrosa}
What a piece of work is man!
02/10/08
Ser ou não ser… Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim, tentando resistir-lhes? Morrer… dormir… nada mais. Imaginar que um sonho põe remate aos sofrimentos do coração e golpes infinitos que constituem herança natural da carne, é solução para almejar-se. Morrer… dormir… dormir… Tavez sonhar… É aí que bate o ponto! O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus tratos dos tolos, a agonia de um amor não retribuído, as leis morosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Quem fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte – terra desconhecida de cujo âmbito ninguém voltou – que nos inibe a vontade, fazendo com que aceitemos os males conhecidos sem buscarmos refúgio em outros males ignorados? Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões. Mas, silêncio! Aí vem vindo a bela Ofélia. Em tuas orações, ninfa, recorda-te de meus pecados.
{William Shakespeare} – Hamlet
Uma espécie de perda
02/10/08
Uma espécie de perda
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
{Ingeborg Bachmann}, “O tempo aprazado”