O Amor de Si
O egoísmo psicológico] diz-nos que toda a benevolência é simples hipocrisia, que a amizade é uma intrujice, que o espírito público é uma farsa, que a fidelidade é uma armadilha para conquistar o crédito e a confiança, e que, embora no fundo todos nós persigamos apenas o nosso interesse privado, usamos estes disfarces encantadores para fazer os outros baixar as suas defesas e expô-los ainda mais aos nossos estratagemas e maquinações.[…]
Constatamos que os animais são capazes de ser generosos tanto para a sua própria espécie como para a nossa. Além disso, neste caso não há a menor suspeita de disfarce ou artifício. Deveremos também explicar os seus sentimentos em termos de refinadas deduções de interesse próprio? Ou, se admitirmos uma benevolência desinteressada nas espécies inferiores, por que regra de analogia podemos recusá-la à superior?
O amor entre os sexos gera uma satisfação e uma boa vontade muito distintas da gratificação de um apetite. Em todos os seres sensíveis, a ternura para com os filhos geralmente é capaz de contrabalançar por si os mais fortes motivos do amor de si e não depende de maneira alguma dessa afeição. Que interesse pode ter em vista uma mãe dedicada que perde a sua saúde ao cuidar assiduamente do seu filho doente, e que depois, libertada pela sua morte da escravatura desse cuidado, definha e morre de desgosto? […]
Além disso, se considerarmos o assunto corretamente, descobriremos que a hipótese que admite uma benevolência desinteressada, distinta do amor de si, na verdade possui uma maior simplicidade […] do que aquela que procura reduzir toda a amizade e humanidade a este último princípio. Todos reconhecem que há necessidades ou apetites corporais que precedem necessariamente toda a satisfação sensual e nos levam diretamente a procurar a posse do objeto. Assim, a fome e a sede têm como fins os atos de comer e de beber, e da gratificação destes apetites primários surge um prazer que pode tornar-se objeto de outra espécie de desejo ou inclinação secundária e interessada. Da mesma maneira, há paixões mentais pelas quais somos imediatamente impelidos a procurar objetos particulares, como a fama, o poder ou a vingança, sem qualquer atenção ao interesse, e, quando conseguimos esses objetos, segue-se uma satisfação aprazível em conseqüência das nossas afeições saciadas. […]
Ora, onde reside a dificuldade em perceber que as coisas podem passar-se da mesma forma com a benevolência e a amizade, e que, em virtude da estrutura original do nosso temperamento, podemos desejar a felicidade ou o bem de outrem que, através dessa afeição, se torna o nosso próprio bem e é depois procurado pelos motivos combinados da benevolência e da satisfação pessoal? Quem não vê que a vingança, pela simples força da paixão, pode ser avidamente perseguida ao ponto de nos fazer ignorar conscientemente todas as considerações de conforto, interesse e segurança, e, como em alguns animais rancorosos, infundir na nossa própria alma as feridas que infligimos ao inimigo? E que filosofia maligna terá de ser aquela que não dá à humanidade e à amizade os mesmos privilégios que concede indiscutivelmente às paixões mais negras da inimizade e do ressentimento?
[David Hume]
Investigação sobre os Princípios da Moral, 1751, pp. 175-181.