Ensino
Uma das diferenças entre animais e o homem é está: os animais transmitem de geração para geração apenas informações genética, já os homens também transmitem informações adquiridas. Um dos métodos de tal transmissão é chamado “ensino”. A geração transmissora, (o professor), comunica à geração receptora, (ao aluno), os métodos de comportamento e de conhecimento, (os “valores” e as “teorias”), acumulados ao longo da história da humanidade, e enriquecidos por todas as gerações participantes. Pois o ensino, como tanta outra estrutura atual, está em crise.
Um aspecto importante da crise se mostra, se enforcarmos o ensino do ponto de vista dos professores. São transmissores de modelos, mas não necessariamente meros transmissores. Podem, é claro, transmitir como meros canais inertes. Podem comunicar modelos de comportamento do tipo “ame teu pai e tua mãe”, ou modelos de conhecimento do tipo “a baleia é mamífero”, e “dois mais dois são quatro”, sem ativamente se engajarem em tais modelos. Mas neste caso poderão ser provavelmente substituídos por máquinas de ensino programado. São superados. O progresso impiedoso varrerá este tipo de professores da cena.
Mas os professores podem, também, engajarem-se nos modelos que transmitem. Serão no caso autenticamente humanos. Mas aí surge o problema do esvaziamento atual dos modelos por dúvidas crescentes. Por exemplo: “ame teu pai e tua mãe, mas não edipicamente”. Ou: “a baleia é mamífero nos critérios determinados pela atual zoologia”. Ou, “dois mais dois são quatro no sistema decimal, desde que zero seja número, e todo sucessor de número seja número”. Em tais casos surgirá no professor um terrível conflito. Com que direito transmitir modelos, os quais são aceitos pelo próprio professor com graves reservas? Não seria melhor transmitir as dúvidas em vez de modelos?
O ensino, embora não o único para transmissão modelos adquiridos, é um método muito importante. Seria difícil ver como, sem ele, poderá ser mantida aquela cadeia de gerações chamada “história da humanidade”. É claro, há o método de aprendizado que transmite modelos de funcionamento. A sociedade tecnológica com sua crescente automação poderia sobreviver à morte do ensino. Mas valerá isto a pena?
A crise do ensino está sendo enfrentada. O ensino programado é uma resposta possível. Mas não resolve o problema dos modelos em vias de esvaziamento. A solução de tal problema exige que mudem por completo as atitudes da humanidade com relação aos modelos. A crise do ensino é subcrise dos valores. Se a crise dos valores não for resolvida, o ensino passará a ser tarefa de televisões e aparelhos.
[Vilém Flusser]
Publicado originalmente em “Folha de São Paulo” 19/02/1972