No capítulo terceiro de sua obra Les Deux Sources de la Morale et de la Religion¹ em que Bergson trata da “Religião Dinâmica”, ele compara o misticismo oriental com o misticismo grego, tratando sobretudo das suas diferenças de origem e da subseqüente divisão entre cultura ocidental e oriental com as aproximações entre as duas tradições culturais. Estabelece-se uma distinção entre o que se considera “místico” e o que seria a experiência psíquica interior em si mesma. Místico seria relativo à abordagem e julgamento que se faz da “experiência psíquica em si” após seu sucesso, já com uma conotação religiosa e em contraposição a ação diuturna comumente levada no mundo exterior.
         Bergson mostra uma grande preocupação em não aceitar prontamente os estados místicos que poderiam se confundir com alucinação e doença-mental. Ele fala inclusive das experiências místicas como “impedimentos” ou “desvios” do caminho de identificação do místico com a divindade. Aborda os estados místicos em relação com as imagens produzidas por eles, que seriam simbólicas de um rearranjo psíquico do homem místico, mas que também podem significar uma mera expressão de loucura. Segundo nosso ponto de vista, os estados “místicos” que se pretende atingir dentro da tradição oriental não seriam “hipnóticos” porque neles não se perde a consciência, mas pelo contrário, se permanece super-consciente. Todavia a própria tradição do sistema de práticas ascéticas conhecidas como yoga hindu, por exemplo, aponta em seus textos² uma preocupação, paralela a de Bérgson, em relação a possibilidades de sucederem desvios na intenção primeira de realização espiritual, a partir da produção de visões artificiais e poderes paranormais (sidhis) que fascinariam o praticante o levando a acreditar haver atingido um estado superior de consciência que, na verdade, o impede de alcançar a meta última de união com o Divino-Absoluto. Por isso o papel do mestre espiritual ou Guru na tradição oriental, aquele que possuindo um conhecimento prévio por experiência própria poderia guiar o discípulo (chelá) com segurança.
         A questão principal que Bergson aponta em seu texto é “o que se faz” (?) com a experiência religiosa que qualifica o homem como místico. Nesse momento é que se apresenta a grande diferença entre o Oriente tradicional e o Ocidente. A força ou poder que as práticas “místicas” vão produzir será aplicado pelos ocidentais cristãos na divulgação da sua religião ou, mais atualmente na emancipação do senso de solidariedade e participação política. No Oriente, pelo contrário, Bergson faz verificar dois períodos distintos: O período anterior e o posterior ao contato do Oriente com o Ocidente já industrializado. No Oriente todas as práticas ascéticas de poder anteriores ao contato com o Ocidente industrializado vão ser aplicadas num campo estritamente pessoal de libertação. O conhecimento sacado da mística era então usado como meio de livrar-se do mundo e de seu sofrimento inerente e não como um fim em si mesmo como nos gregos. É justamente esse conhecimento como uma finalidade em si mesmo que aplicado à vida nas relações humanas (polis) vai gerar todo o desenvolvimento material do Ocidente.
         A partir do século XIX o desenvolvimento do Ocidente vai contaminar certos místicos da tradição oriental como Ramakrishna³ (1834-1886) e Vivekananda (1862-1902), que irão colocar a sua força espiritual, “à moda ocidental”, a serviço da emancipação da humanidade no seu aspecto de convivência no mundo e na sociedade, e não mais unicamente no sentido de uma negação deste como condição para se atingir a Deus.
         Na Grécia tomada como berço da civilização ocidental, a religião pública dos mitos gregos e sua compreensão aliada à religião mais mística dos mistérios órficos é que tornará possível a aplicação de um conhecimento na esfera da vida material, diferente do que acontecia na antiga tradição oriental onde o conhecimento interno foi sempre instrumento de emancipação espiritual, que de acordo com suas tradições religiosas previa uma negação do mundo, do qual era preciso evadir-se.
         A colonização ocidental do Oriente na dinâmica comercial do capitalismo, segundo Bérgson, vai balançar o estabelecimento da visão mística extra-mundo do Oriente. Mahatma Gandhi no século XX será a expressão maior que irá mostrar a força mística do hinduismo através da prática tradicional de Ahinsa ou não-vilência na sua ação política de não-colaboração com o projeto inglês ocidental de colonização, que afinal encontra origem na tradição clássica (greco-romana) que se pauta pela utilização de todo conhecimento na direção de interferir sobre a vida produtiva ou ação no mundo material. Com a não-colaboração de Gandhi, a Índia conquista a sua independência política em relação à Inglaterra. Vê-se então cada vez mais em todo o Oriente o estabelecimento de uma ruptura entre a tradição mística do passado pré-expansionismo ocidental, para um período em que, na prática, o mundo em suas relações passa a ser colocado também como fim para os países orientais, independente da continuidade das práticas místico-religiosas que, no campo pessoal seguem sua direção segundo a tradição de transcendência.
         A questão principal de diferenciação entre as tradições místicas do Ocidente e do Oriente antigo é que os místicos ocidentais se dirigem à ação com sua robustez intelectual. Os místicos cristãos usam toda a sua experiência interior para estabelecer sua ação de divulgação do cristianismo enquanto os místicos orientais, antes de Ramakrishna e Vivekananda, não têm esse objetivo e suas práticas são exclusivamente utilizadas como instrumentos de acesso a realização interior.
         Se a razão foi também exercitada na tradição antiga do Oriente 4 , ela era utilizada como um mero meio ou instrumento para alcançar o estritamente espiritual e não como um fim nela mesmo com vistas à ação no mundo, como na tradição clássica do Ocidente. Parece claro hoje, que ao mesmo tempo em que a tradição do Ocidente invade o Oriente que se tecnologiza de maneira surpreendente, o Oriente oferece cada vez mais suas tradições místico-religiosas antigas como elemento terapêutico capaz de proporcionar, no campo do indivíduo, um pouco de sossego à ansiedade do homem ocidental que em vistas de possuir o mundo exterior se deixa empobrecer em termos de consciência profunda de Si mesmo e vida espiritual.

[1] BERGSON, Henri. Les Deux Sources de la Morale et de la Religion. PUF, 1973.
[2] Cf. TAIMNI, I.K. The Science of Yoga. TPH. 1961. Os yoga-sutras de Patanjali.
[3] Ramakrishna e Vivekananda foram reconhecidos mundialmente pela sua divulgação do hinduismo (yoga) no Ocidente.
[4] Sobre a Escola Nyaya (Regra) fundada por Akshapâda Gautama em 500 A.C. cf. FEURSTEIN, G. A Tradição do Yoga. Pensamento, SP, 2006. pp. 119-120.


[MS. Paulo Araújo de Almeida]
Coordenador do GEFO (Grupo de Estudos em Filosofia Oriental de Pouso Alegre – MG).