Justino, Filosofia e o Logos
Justino, chamado mártir nasceu em Nablus, antiga Siquém na Samaria no início do segundo século. Filho de pais gentios, isto é, estrangeiros aos judeus, sofre seu martírio entre os anos 163 e 167 da era cristã. Justino elabora uma idéia original ao afirmar sobre a participação humana no Logos. Faz uso de uma expressão estóica:(logos semeador). Para Justino, Cristo (o Logos) de certa maneira está presente na constituição humana. Afirma que esta semente está presente em todos os homens e de maneira mais visível naqueles que se empenharam por viver a verdade e uma vida reta (moral) mesmo antes da encarnação do verbo.
Os antigos filósofos experimentaram do Logos e são chamados por Justino de irmãos. As Escrituras, particularmente no evangelho de João, diz: “A vida estava nele e a vida era a luz dos homens” Jo 1.4. A expressão luz no original é phos, significando aquilo ou aquele que capacita os homens a reconhecerem a ação de Deus no mundo.
A caminhada de Justino é algo surpreendente. Convive um bom tempo com filósofos estóicos e desiludido passa a buscar respostas com os chamados peripatéticos (platônicos). Acha interessante, mas ao ser cobrado por um desses mestres (queria um salário para ensiná-lo) o abandona. Passa então a viver ao lado de um pitagórico (seguidor de Pitágoras) que muito se orgulha de seu saber, mas desta vez Justino se decepciona ao ser informado que para chegar à verdade deveria estudar matemática, música e geometria, matérias basilares para se alcançar o verdadeiro conhecimento. Sua admiração pelos pitagóricos então desaparece. Certo dia acontece o inusitado na vida do primeiro filósofo cristão: encontra com um desconhecido que o leva a conversão. O ancião anônimo o remete às Escrituras Sagradas, interrogando-o sobre várias questões de cunho filosófico, Justino se vê sem respostas e cai em contradição. Descobre a maravilhosa graça não desprovida de razão. A fé e a razão podem andar de mãos dadas. Esta talvez é uma das maiores contribuições de Justino: a verdade do evangelho não despreza o conhecimento humano, mas amplia-o sobremaneira e encontra sua plenitude na pessoa de Cristo, o Logos há tanto especulado, o Verbo há muito objeto de investigação.
A influência de tal pensamento perpassa a idade média, renascença, iluminismo e chega a Reforma Protestante do século XVI. João Calvino, o exegeta da Reforma em seu magnum opus “As Institutas ou Tratado da Religião Cristã”, escrita em 1535 e reeditada até sua definição em 1559 escreve: “existe na mente humana, e, na verdade, por natural disposição, certo senso da divindade, damos como além de controvérsia” (CALVINO, 1985, p.59). Todos são nascidos dispostos para conhecerem a Deus, segundo Calvino. Esmiuçando esta questão cita três filósofos:
“Isto nem aos próprios filósofos foi desconhecido. Ora, não é outra [cousa o] que Platão quis [dizer], por isso que, amiúde, ensinou que o sumo bem da alma é semelhante com Deus, quando, aprendido o conhecimento dEle, toda nEle se transforma. Daí, muito a propósito, nos escritos de Plutarco, arrazoa também Grilo, quando afirma que os homens, uma vez lhes seja ausente da vida a religião, não só em nada mais dignos de lástima, porquanto, sujeitos a tantas espécies de males, levam, de contínuo, uma vida tumultuária e desassossegada” (CALVINO, p. 62).
Daí afirma o Reformador, com fundamentos, a real impossibilidade de ateísmo. Calvino era de fato um intelectual. Foi durante algum tempo um humanista. Conhecia a Filosofia. Em 1532 é editado um ensaio seu sobre Sêneca, filósofo romano contemporâneo do apóstolo Paulo, intitulado De Clementia (4 de abril de 1532).
Para Calvino, toda a verdade vem de Deus, não importando quem a diga: “…visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus…” (CALVINO, 1998, p. 318).
Herminstein Maia Pereira da Costa, teólogo presbiteriano ao escrever sobre cristianismo e cultura clássica ressalta:
“Nesse período (Renascimento), passou a haver uma compreensão predominante de que existia uma identidade quase essencial entre a filosofia e a religião e, nesse sentido, o “Verbo Encarnado” dos evangelhos seria a mesma razão (Logos) que governa o pensamento dos filósofos gregos, principalmente a filosofia de Heráclito (c.540-c. 480AC). Há então, uma compreensão de que é possível estabelecer uma harmonia entre a filosofia e a teologia dos Pais da Igreja… Na verdade não existe contradição entre eles” (COSTA, 1999, p. 166).
Interessante aspecto sócio-religioso está presente desde as origens: nenhum povo, etnia, por mais isolado e talvez menos desenvolvidos aos nossos olhos, deixam de ter sua relação com o divino. Somos homo-religiosus.
O Logos semeador certamente é assunto extenso, discutido no decorrer da história e que certamente tem suas implicações no século XXI. Podemos perguntar: é a religião meramente humana? De onde vem a predisposição do homem para a transcendência? A antropologia registra comunidades intrinsecamente atéias? O desprezo pela por parte de religiosos em relação à filosofia tem a ver com a negação do Logos semeador? A essência e proposta da religião cristã, tirada suas distorções e exageros no decorrer dos séculos é válida para o homem do século XXI? Como trabalharmos com assuntos tão dissecados por muitos pensadores, mas que sobrevivem até hoje?
REFERÊNCIAS
CALVINO, João. As Institutas: ou tratado da Religião Cristã. SP: Casa Editora Presbiteriana, V1, 1985.
______.As Pastorais.SP: Parácletos.1998.
COSTA, Herminstein Maia. Pereira da. João Calvino: O Humanista subordinado ao Deus da Palavra. In: Fides Reformata. São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós Graduação Andrew Jumper, 4/2,1999.
PHILOTHEUS, B.; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes. 2004.
Bernardo Rafael de Carvalho Pereira
Segundo Período de Filosofia
há 13 anos atrás
Peripatético é relacionado à Aristóteles, não Platão.