“O inacabamento de uma filosofia do inacabamento é duplamente desconcertante”. Paul Ricoeur

Tal afirmação, por ocasião da morte de Merleau-Ponty, traduz o quanto ficou abala da a Filosofia contemporânea pela brusca interrupção da notável obra do mais autêntico e ao mesmo tempo mais profundamente original discípulo da filosofia husserliana. Merleau-Ponty, talvez mais que qualquer filósofo de sua geração, manifestou com vigor qualidades primordiais de autêntico filósofo: a perplexidade diante do mundo e o anseio constante em reaprender a ver este mundo. O caráter inacabado de sua obra não é definido. unicamente pela inesperada interrupção causada pela morte prematura (l96l), mas o próprio Merleau-Ponty não deixou de insistir (aliás, como seu mestre Husserl já o fineza), no “caráter incoativo da filosofia”, do incessante recomeçar da tarefa filosófica que recusa toda cristalização da obra em sistema acabado e fechado. De fato, ele via no inacabamento da fenomenologia, da qual foi e permanece ainda, pelas suas obras, um dos mais brilhantes representantes, não um sinal de fracasso, de indefinição, mas sim o reconhecimento de sua fertilidade e de sua verdadeira tarefa, a saber: ‘revelar o mistério do mundo e o mistério da razão”. ¹

A leitura de Merleau-Ponty não só se, justifica pela relevância de sua contribuição para muitos problemas filosóficos atuais, mas sobretudo porque através dela entramos no próprio processo da Filosofia, cuja tarefa é, segundo Merleau-Ponty, que reaprendamos a ver o mundo. (Prefácio, pág. XV). De fato, como afirma Merleau-Ponty no Eloge de Ia philosophie,: “filosofar é procurar, é, implicar que há coisas para se ver e se dizer”.

Outros filósofos da existência utilizaram o método fenomenológico, chegando mesmo a entrelaçar Fenomenologia e Existencialismo. Porém em nenhum deles se encontram articuladas, de modo tão explícito e harmônico, a Fenomenologia e a existência como em Merleau-Ponty.

Neste texto não tenho a intenção de resumir o pensamento de Merleau-Ponty. Seria demasiadamente pretensioso, dado o âmbito deste trabalho. Proponho uma breve leitura da “carta-programa”, o prefácio à Fenomenotogia da Percepção, onde Merleau-Ponty expõe sua concepção de filosofia que ele denominou Fenomenologia, retomando por sua conta e reassumindo por força de sua criatividade as trilhas de Husserl. Na verdade, podemos até afirmar que, através dos breves parágrafos deste prefácio, ficamos entendendo Husserl e a própria Fenomenologia como estilo de pensamento que está à procura do sentido do sujeito, do mundo, da História e da própria Filosofia.

Este prefácio nos coloca na trilha da idéia que Merleau-Ponty tinha de Fenomenologia e nos mostra como se articulam a Fenomenologia e a existência apresentando em projeto as linhas principais de sua Fenomenologia existencial, ao mesmo tempo que, anuncia o cunho mais nitidamente ontológico de sua obra escrita após a Fenomenologia da Percepção, publicada posteriormente com o título de O Visível e o Invisível.

Embora breve, o texto do prefácio encerra inúmeras questões de grande relevância, que proponho englobar em 2 tópicos: -”A concepção da Fenomenologia como método” e “Os principais temas da Fenomenologia e sua articulação com a existência”.

I. A concepção da Fenomenologia como método

É útil apontar as principais influências que marcaram a reflexão de Merleau-Ponty. A este respeito A. Robinet apresenta uma observação interessante. Diz ele: “A matriz hegeliana e fenomenol6gica de sua reflexão é demasiado evidente e reconhecida para que não se tenha, de início, descrito esta situação em função de três H: Hegel, Husserl, Heidegger’. (Merleau-Ponty, p. 671 1970).

Em 1936, o próprio Merleau-Ponty publica um trabalho Existence et dialetique, no qual faz uma autoconfissão intelectual reconhecendo sua filiação a Hegel. Em artigo publicado vinte anos depois, “O existencialismo de Hegel”, Merleau-Ponty reconhece que ‘”Hegel está na origem de tudo o que se ‘realizou de grande em Filosofia há um século – p. ex., o marxismo, Nietzsche, a Fenomenologia, o Existencialismo alemão, a Psicanálise -; ele inaugura a tentativa de explorar o irracional e integrá-lo em uma razão ampliada, tentativa que permanece a tarefa de nosso século. Ele é o inventor desta razão mais compreensível que o entendimento que, capaz de respeitar a variedade e a singularidade dos psiquismos, das civilizações, dos métodos de pensamento e a contingência da História, não renuncia, no entanto, a dominá-los a fim de os conduzir à própria verdade “, (Sens et non-sens, p. l pag.110). Ler e interpretar Hegel é, para Merleau-Ponty, tomar posição sobre todos os problemas filosóficos, políticos e religiosos de nosso século. Do texto citado pode-se apreender as preocupações herdadas de Hegel: a relevância do irracional, a proposta de uma razão ampliada mais compreensiva que o entendimento, e o respeito ao individual e ao contingente. “Pode se falar de um Existencialismo de Hegel, continua Merleau-Ponty, no sentido em que ele não se propõe encadear conceitos, mas revelar a lógica imanente da experiência humana em todos os seus setores”. Além disso, “o homem não é (para Hegel) unia consciência que possui claramente seus próprios pensamentos, mas uma vida dada a si-própria, uma vida que procura compreender-se a si mesma. Toda Fenomenología do Espírito descreve. este esforço que o homem faz para se recuperar a si mesmo”. (Idem, p. 113).

A influência mais marcante foi, no entanto, exercida pela obra de Husserl. Merleau-Ponty não o considerava um chefe, mas um mestre. A um chefe não se pode superar. E mais, superar um mestre não significa simplesmente destruí-lo, recusar o momento de sua obra, e ’sim, “recomeçar seu esforço, reassumir, mais que suas teses, o movimento de sua reflexão’. (“Sobre a Fenomenologia,da linguagem”, em Sinais, p. 123).

Ao fazer Fenomenologia, Merleau-Ponty não pretende abordar um problema de escola. Ele realmente reassume, a seu modo, o último Husserl, mais facilmente identificado com a época do Lebenswelt.

Merleau-Ponty entendeu que, para se conhecer a Fenomenologia de Husserl, importa, em primeiro lugar, não considerar cada uma de suas obras isoladamente, e não ver nelas a aplicação sucessiva decisiva e um método original a temas diversos, ou uma seqüência de pontos de vista onde se exprimiria, de modo sempre novo, uma mesma intuição fundamental. Devemos, ao contrário, ver nela um esforço paciente para levar à claridade uma visão de início obscura, tateante, de modo que as últimas obras são, em grande medida, indispensáveis à compreensão das primeiras. (Cf. Thevenaz, De Husserl à M. Ponty, p. 37).

O primeiro Husserl, aquele das Investigações das Idéias, das Meditações cartesianas é rejeitado por Merleau-Ponty. Ele elabora uma renovação da Fenomenologia que deixa de ser uma pretensão de ciência estrita para se tornar uma orientação para o irrefletido. Ao mesmo tempo ele reassume, a seu modo a redução fenomenológica, que em vez de nos conduzir a um Ego puro deve levar-nos a um sujeito encarnado, situado no mundo que antecede a reflexão. Merleau-Ponty retorna ao Lebenswelt, ao mundo da vida, às coisas mesmas como o berço do sentido.

O segundo Husserl, para Merleau-Ponty, longe de conduzír necessariamente ao Idealismo, contém em germe os temas centrais de uma filosofia existencial. Merleau-Ponty não poderia ser mais enfático ao afirmar que, se a Fenomenologia é considerada como o estudo das essências, ela é também uma filosofia que recoloca as essências na existência. A presunção idealista que aparece nessa definição contrasta com as novas aquisições da postura existencial. “Longe de ser, como se acreditava, a fórmula de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é aquela de uma filosofia existencial’. (Prefácio, p. IX). Pode-se mesmo ver na filosofia de Merleau-Ponty a realização da redução fenomenológica, e neste processo de redução, a noção de intencionalidade exerce um papel singular. A intencionalidade deixa de ser a propriedade da consciência para ser característica de um sujeito voltado ao mundo. (Prefácio, p. VIII).

“Que é Fenomenologia?”, pergunta Merleau-Ponty. “É o estudo das essências’, é uma “filosofia que recoloca as essências na existência’; “uma filosofia para a qual não se pode compreender o homem e o mundo senão a partir de sua facticidade”; “é uma filosofia transcendental” que coloca entre parênteses, para se compreendê-las, as afirmações da atitude natural; mas é também a filosofia para à qual o mundo é sempre “déjà lá” antes da reflexão. É além disso “a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como é, sem levar em conta a sua gênese psicológica e as explicações causais do cientista.

A Fenomenologia para Merleau-Ponty permaneceu longo tempo no estado de começo de problema. Como podemos compreender isso? Renunciando a encará-la como uma moda ou um mito; – reconhecendo que a carência de definição clara e decisiva por parte daqueles que a fundaram e a enriqueceram com suas reflexões e obras, significa exatamente isso: ela é um constante recomeçar, um problema, ela está sempre em estado de aspiração. Podemos compreender isso, se considerarmos que a Fenomenologia “se deixa praticar e reconhecer como estilo, se deixa reconhecer como movimento” e, além disso, se entendermos que é “em nós mesmos que encontraremos a unidade da Fenomenologia e seu verdadeiro sentido’ (Prefácio, p. II); se conseguirmos ‘articular deliberadamente os famosos temas fenomenológicos como eles se articularam espontaneamente na vida” (idem). Podemos perceber desde já qual o sentido da Fenomenologia para Merleau-Ponty. Seu destino como nova maneira de filosofar depende da sua articulação com a existência concreta. Assim, entendemos como Merleau-Ponty, partindo do pressuposto hegeliano de que se deve começar pela facticidade existencial fenomenal humana, toma como ponto de partida o fenômeno do’ comportamento e nele erige a percepção como contato primeiro com o mundo. E mais, como neste marco de facticidade se procede a uma transformação da subjetividade- que até o momento era caracterizada como consciência que se abre ao mundo objetivo e, no caso de Husserl, como, consciência reduzida, constituída. Merleáu-Ponty vai até à raiz da subjetividade com sua concepção do corpo-sujeito, corpo este que estabelece com o mundo uma relação pré-objetiva, pré-consciente, de caráter dialético, de, modo algum causal ou constituinte: fazer do corpo o sujeito da percepção não significa ceder ao impulso do empiricismo, mas antes tomar partido contra o racionalismo cúmplice do empirismo no sentido de se ligarem ao pensamento causal. “Rejeitamos o formalismo da consciência e fizemos do corpo o sujeito da percepção”. (Phénomènologie de Ia perception, p. 260). A este corpo-sujeito irão unir-se dialeticamente muitos outros momentos: a ação, o conhecimento e outras afeições. Por esta concepção do corpo-sujeito, Merleau-Ponty recusa e supera, além disso, o rígido dualismo cartesiano, da res cogitans e res extensa. Para Merleau-Ponty, “a relação do sujeito e do objeto não é esta relação de conhecimento de que falava o idealismo clássico e no qual o objeto aparece sempre como constituído pelo sujeito, mas uma relação de ser segundo a qual, paradoxalmente, o sujeito é seu corpo, seu mundo e sua situação, e de certa forma estabelece com estes uma permuta”. (“La querelle de l’existentialisme” em Sens et non-sens, p. 125).

E mais, se a Fenomenologia é uma filosofia transcendental, que para explicar a atitude natural deve suspender as afirmações desta, não se deve considerar aquela atitude transcendental como uma atitude que suprime a atitude natural, mas sim que conta com ela, já que a supressão do mundo ‘material suporia, de imediato uma aceitação do idealismo, o que é rejeitado por Merleau-Ponty. Aliás, é a própria posição de Husserl em suas últimas obras onde propõe a volta ao Lebenswelt.

E se a Fenomenologia é ” a ambição de uma filosofia em ser ciência estrita” (Prefácio, p. II), continua Merleau-Ponty, ” ela é também uma resenha do espaço, de tempo, do mundo ‘vivido’ ‘. (Idem). Em Expérience et jugement, Husserl afirmou: ‘O retorno ao mundo da experiência é o retorno ao mundo da vida, isto é, ao mundo no qual nós já vivemos sempre e que constitui o solo de toda operação de conhecimento e de toda determinação científica” (p. 47-48 ).

Merleau-Ponty erige o Lebenswelt como o ponto de partida de sua Filosofia, ao mesmo tempo que reconhece este retorno ao mundo da vida” como a contribuição mais importante da filosofia husserliana. (Cf. As Ciências do Homem e a Fenomenologia).

A partir destes esclarecimentos apresentados por Merleau-Ponty sobre sua noção de fenomenologia, podemos compreender a importância dos principais temas do método fenomenológico tal como apresentou Merleau-Ponty: a volta às coisas mesmas como a finalidade mesma da Fenomenologia; a redução fenomenológica. que irá revelar-nos nossa abertura ao mundo (intencionalidade) e aos outros. (intersubjetividade).

2. Os principais temas da Fenomenologia e sua articulação com a existência

2.1. O retorno às coisas mesmas

Logo no início do “Prefácio”, Merleau-Ponty apresenta o que ele afirma ser a tarefa da Fenomenologia: “ll s’agit de décrire et non pas d’expliquer ni d’analyser” (p. II). A Fenomenologia visa a descrever as coisas e não sua explicação ou análise como uma realidade em si. E logo em seguida, Merleau-Ponty parece estabelecer um conflito entre Filosofia e Ciência. “Este primeiro lema que Husserl atribui à Fenomenologia incipiente de ser uma ‘psicologia descritiva’ ou de retornar às coisas mesmas é, de início, o desmentido da ciência. (Idem). Muitos interpretaram tal expressão como a presença de um subjetivismo fenomenológico em face de um objetivismo científico. Ou ainda como a recusa em se levar em conta as contribuições da ciência. O próprio Merleau-Ponty esclarece sua posição com o intuito de evitar novos equívocos. Tal desmentido visa, ao contrário, não à ciência enquanto tal, mas ao pretendido caráter absoluto das teorias empiristas, que, assim como o intelectualismo, pressupõem, sem explicitar, aquilo que julgam. “A Filosofia não é ciência, porque a ciência acredita poder sobrevoar seu objeto, tendo por adquirida a correlação do saber e do ser, ao passo que a Filosofia é o conjunto das questões onde aquele que questiona é ele próprio, posto em causa pela questão”. (Visível e Invisível, p. 37), Há um desmentido, então, da ciência, na medida em que se considere esta como a exterioridade mútua das partes, ligadas por certas relações de causalidade, o que conduz ao ocultamente de nossas relações com as coisas: o que, aliás, fica claro na própria estrutura do comportamento. E, continua Merleau-Ponty, “eu não sou o resultado do entrelaçamento de causalidades múltiplas que determinam meu corpo ou meu “psiquismo”.. . “Tudo o que sei a respeito do mundo, mesmo pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência de mundo sem a qual os símbolos da ciência não significariam nada’. (Prefácio, p. II).

O retorno às coisas não se identifica, pois, com o voltar ao objeto da ciência, nem com o voltar-se para dentro de si, para o interior da consciência, a um subjetivismo. Mas, que é então? ‘Retornar às coisas mesmas é voltar-se para este mundo prévio a todo conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e ‘ dependente, assim como a geografia com relação à paisagem onde apreendemos de início o que é uma floresta, um campo, um riacho”. (Idem, p. III). É a volta ao mundo anterior à reflexão, volta ao irrefletido, ao mundo vivido, sobre o qual o universo da ciência é construído.

Este retorno ao mundo da vida leva, como conseqüência, a rejeitar a relação cognoscitiva apresentada tanto pelo empiricismo quanto pelo intelectualismo. Para Merleau-Ponty, tanto Descartes quanto Kant introduzem na relação cognoscitiva uma consciência testemunho desta inesma relação. “Descartes e principalmente Kant libertaram o sujeito ou a consciência, fazendo ver que eu não poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente não me sentisse existindo no ato de apreendê-la.. . “. (Prefácio, p. III). Além disso, afirmar a supremacia da consciência sobre o objeto é reconhecer que o objeto aparece através da atitude sintética do sujeito. Isso nada mais é que afirmar que a relação cognoscitiva parte da existência prévia de uma consciência da relação e que constitui o objeto. A consciência não se resume na tarefa de construir o mundo real em mundo, da reflexão. Admitir isso é negar a nossa abertura essencial ao mundo, é negar a percepção. O real é -um tecido sólido, diz MerleauPonty; ele não espera nossos juízos para se anexar os fenômenos mais surpreendentes nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis”. (Prefácio, p. V).

Assim entendemos a descrição como conseqüência da percepção. Esta “não é uma ciência do mundo, não é mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre ‘ o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles”. ( Prefácio p., V). Se o ” real deve ser descrito e não construído ou constituído quer dizer que não posso identificar a percepção às sínteses que pertencem à ordem do juízo, dos atos e da predicação’. (Idem I p. IV) E o mundo deixa de ser um objeto constituído (como o é para a ciência), para transformar-se na base, o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. De novo, vemos claramente a importância atribuída por Merleau-Ponty à nossa abertura ao mundo, o que leva à negação do solipsismo. “A verdade não habita o .’homem interior’, ou antes não há homem interior, o homem está no mundo e é no mundo que ele se conhece”. (Prefácio, p. V)

O retorno às coisas é então a recuperação do nascimento do sentido do Lebenswelt. Isso se torna possível pela redução fenomenológica que irá nos esclarecer justamente esta abertura ao mundo e ao outros.

2.2. A redução fenomenológica

Não há certamente nenhuma outra questão sobre a qual Husserl tenha dedicado mais tempo para compreender ele próprio, assim como nenhuma questão sobre a qual tenha voltado mais vezes, já que a problemática da redução ocupa nos inéditos um lugar importante”. (Prefácio, p. V).

Com esta observação Merleau-Ponty se une à maioria dos intérpretes de Husserl que vêem na redução um dos pontos críticos da fenomenologia e, talvez, um dos mais difíceis. (Cf. Van Breda. “La reducción fenomenológica”, em Cahiers de Royaumont, Buenos Aires, 1968, p. 269-278. De Waelhens. Une philosophie de l’ambigüité, p. 89 e seguintes). Merleau-Ponty sentiu a ambigüidade ou a enigmaticidade da redução, Mesmo assim pode-se afirmar que a postura fenomenológica de Merleau-Ponty está estruturada sobre o fundo da redução. Uma leitura atenta da Fenomenologia da Percepção mostra isso claramente.

Em Husserl, a redução aparece sob formas diversas, segundo a própria evolução de seu pensamento. No início de sua carreira ele entendeu a redução fenomenológica como a colocação entre parênteses da existência facticial das coisas. Deste modo, ele permanecia preso a um duplo pressuposto racionalista. Em primeiro lugar ele acreditava que a existência é separável do sentido das coisas, ou que a existência não é um predicado. Em seguida, que a existência é passível de dúvida. Husserl a concebia como sujeita à dúvida Tal concepção é válida no âmbito epistemológico do século XIX, na perspectiva de uma consciência/interioridade, fechada sobre si mesma, que representa um “exterior”. Tal tese da consciência como representação, tese racionalista, é ela própria submetida à redução. Trata-se de um segundo aspecto da redução que se manifesta no lema “retorno às coisas mesmas”, como já vimos, que prescreve ao fenomen6logo voltar-se às coisas “naturais” tais como aparecem antes de qualquer deformação ou alteração produzida pela Filosofia ou pelo saber científico. (Husserl, Idées I, p. 103.) Como vimos, Merleau-Pqnty argumenta que a concepção científica se fundamenta sobre a experiência do mundo natural do qual ela não é senão explicitação. E mais, com a evolução do pensamento de Husserl, esta idéia da consciência como representação se tornará superada e proscrita com a introdução da noção de intencionalidade. Assim a existência facticial não é mais passível de dúvida, mas participa da certeza da pr6pria consciência. (Cf. De Waelhens, op. cit., p. 90.).

Em suma, o objetivo primeiro da redução fenomenológica é, como apresenta o primeiro volume das Idées, mostrar a necessidade de um elemento puro que possa servir de ponto de partida para um pensamento radical, um fundamento absoluto do conhecimento, a saber: o cogito, graças à noção de intencionalidade como Sinngebung, operação ativa de significação, orientada para o cogitatum.

Merleau-Ponty, por sua parte, não aceita esta atitude da redução fenomenológica, como atitude idealista de um idealismo transcendental, pois ela refletiria a ruptura entre a consciência e o cogitatum. “A redução é apresentada como o retorno a uma consciência transcendental diante da qual o mundo se estende numa transparência absoluta”… (Prefácio, p. V.).

Merleau-Ponty busca atingir uma autêntica reflexão radical ou .tenomenológica que sirva como meio de tomar consciência de nossa relação ao mundo, de fazer aparecer o mundo. Ele não entende que a finalidade da redução- seja a de nos retirar do mundo para uma consciência pura. Ao contrário, a redução não deve ser considerada como um empreendimento idealista, uma volta reflexiva- a um âmbito interior, ao “homem interior” de Santo Agostinho, mas sim como uma fórmula de uma filosofia existencial.

A estrutura da reflexão radical ou fenomenológica tem finalidades bem precisas: antes de tudo, superar o solipsismo de cunho intelectualista; em seguida, superar o fato da construção do objeto por parte do sujeito defendida pelo intelectualismo, afirmando enfaticamente, contra esta posição intelectualista, a preexistência do ‘ mundo sobre a reflexão. “A tarefa de uma reflexão total … consiste, de modo paradoxal, em reencontrar a experiência refletida do mundo, para recolocar nela a atitude de verificação e as operações refletidas, e para fazer parecer a reflexão como uma das possibilidades de meu ser.’ (Phénomènologie de Ia Perceptionl p. 278-279.) O método fenomenológico fornece o meio para refletir sobre esta reflexão, uma reflexão do 2.1 grau, mostrando que ela se refere ao irrefletido. “Se a reflexão não sair de si mesma não poderá ser considerada verdadeira, como reflexão também necessita se conhecer como reflexão-sobre-um-irrefletido, e conseqüentemente como uma mudança de estrutura de nossa existência (idem p. 76).

E finalmente, mantendo como elemento fundamental o compromisso da consciência e sua intencionalidade, Merleau-Ponty afirma claramente: “0 Cogito deve me descobrir em situação. (Prefácio, .p. VII.).

A reflexão reconhece no irrefletido o seu fundamento. E a redução é a única forma de reflexão que não anula o irrefletido mas o manifesta. Para Merleau-Ponty, mais que para qualquer outro fenomenólogo, a colocação entre parênteses do mundo operada pela redução significa desvelamento e surgimento do mundo-enquanto tal. Vê-se por aí que a consciência não é mais primeira. “0 verdadeiro transcendental é o mundo” (Phénomènologie de la Perception, p. 418) e não o ser (como para Heidegger), ou à consciência (para Sartre). Pela redução, tal como a concebe Merleau-Ponty, é superada a noção de consciência fechada sobre si, tida como ponto de partida e garantia primordial do conhecimento. A consciência se torna abertura ao outro como a si mesma. Merleau-Ponty nos ensinou reconhecer nela “o projeto de mundo, destinada ao mundo, um mundo que ela não abarca e nem possuí, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir”. (Prefácio, p. XIII.) E, do mesmo modo, também, à redução nos mostrou o mundo tal como ele é, antes de qualquer retorno sobre nós mesmos. “0 mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que vivo, sou aberto ao mundo, me comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. (Prefácio, p. XII.).

2.3. A intencionalidade

Desde o inicio do parágrafo onde aborda a noção de intencionalidade, Merleau-Ponty faz uma observação importante, a saber: que ela só é compreensível pela redução. E mais, dizer que “toda consciência é consciência de alguma coisa” não é propriamente uma novidade. Como anota Merleau-Ponty, Kant em sua Refutação do Idealismo mostrou que “a percepção interior é impossível sem a percepção exterior, que o mundo, como conexão de fenômenos, está antecipado na consciência de minha unidade, é o meio para mim de me realizar como consciência” ‘ (Prefácio, p. XII.) “Aquilo, porém”, diz Merleau-Ponty, “que distingue a intencionalidade da relação kantiana com um objeto possível é a unidade do mundo, antes de ser colocada pelo conhecimento, e em um ato de identificação expresso é vivida como já feita ou ” já aí “. (Prefácio, p. XII.) Assim, a atividade de conhecimento propriamente dita não é mais primeira, em sentido absoluto.

A noção de intencionalidade aparece em Husserl na “Primeira Investigação” na “Quinta Investigação” e nas Idéias. (Cf. Recherches Logiques, 2 tomos, PUF, Paris; e Idées directrices pour une Phénomènologie. Ed. Gallimard, París.).

Na “Primeira Investigação”, a intencionalidade é colocada no âmbito da expressão. A palavra para Husserl é sempre significativa, não pode ser reduzida a seu caráter físico. Há uma unidade entre o som verbal e a intenção significativa. A este propósito Levinas assinala que “relação de intencionalidade nada tem a ver com as relações entre objetos reais. ‘É essencialmente o ato de atribuir um sentido (Sinngebung). A exterioridade do objeto representa a própria exterioridade daquilo que é pensado com relação ao pensamento que o visa. O objeto constitui, assim, um momento inelutável do próprio fenômeno de sentido”. (Levinas, En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, p. 22.) Deste modo, continua Levinas, “a intencionalidade designa uma maneira para o pensamento de conter idealmente outra coisa que ela mesma”. (Idem, p. 22.) Sendo a consciência uma visada daquilo que’ ela não é, o seu ato de expressão não pode se identificar com aquilo que ela exprime.

Na “Quinta Investigação”, Husserl estabelece a noção de intencionalidade, partindo de três noções da consciência: I) a consciência como consistência fenomenológica do real, do eu empírico como entrelaçamento das vivências psíquicas na unidade de seu curso; 2) a consciência como percepção interna das vivências psíquicas próprias; e 3) a consciência como nome coletivo para a dita classe de atos psíquicos ou vivências intencionais. (Cf. Recherches Logiques, tomo 2, p.141 e seguintes.) Na terceira noção de consciência, Husserl deixa de lado os limites impostos por Brentano ao ato psíquico para ceder o lugar â vivência intencional. Brentano apresenta várias características do ato psíquico; Husserl, porém, retém só duas: a que afirma o caráter referencial ou intencional da consciência, e aquela na qual Brentano afirma que os atos psíquicos ou são representações ou repousam em representações. Husserl, aliás, irá rejeitar a concepção da consciência representativa. O âmbito limitado deste trabalho não nos permite, entretanto, um aprofundamento desta questão. Isso não significa, no entanto, negar sua relevância.

No Prefácio, Merleau-Ponty aponta que Husserl distingue a, intencionalidade de ato, (a de nossos juízos e nossas tomadas de posição voluntárias) e a intencionalidade operante, “aquela que faz a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que aparece em nossos desejos, em nossas apreciações, em nossa paisagem, mais claramente que no conhecimento objetivo”. (p. XIII.) Esta noção ampliada de intencionalidade permite distinguir a compreensão fenomenológica da intelecção clássica. Merleau-Ponty retoma a intencionalidade husserliana desvinculada de seu caráter solipsisita. Além disso, tal distinção entre intencionalidade de ato e intencionalidade operante não pode ser concebida no âmbito de uma consciência pura. “Trata-se com a intencionalidade, observa o prof. De Waelhens, de reconhecer que a consciência ou o eu são abertura, disposição ao outro, negação do repouso em si mesma e sobre si mesma, e, portanto, de certo modo, negatividade. Que a consciência, em outros termos, não é uma interioridade pura, mas que ela deve ser compreendida como saída de si” (1)*. Assim, entende a preocupação obstinada de Merleau-Ponty em negar a idéia de uma consciência representativa, preocupação, aliás, como já disse, presente em Husserl. Ainda a este propósito, De Waelhens nos relembra a ênfase com que na obra Da essência da verdade Heidegger também rejeita à consciência representativa e concebe o comportamento’ como abertura. (Cf. artigo citado, p. I 19.).

Conforme Merleau-Ponty, devemos “reconhecer a consciência como projeto do mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir”. (Prefácio p. XII-XIII.)

A intencionalidade operante identífica-se com toda atividade do sujeito que deixou de ser propriedade de uma consciência isolada e constituinte, é a própria abertura ao mundo de um sujeito carnal, corporal. Na verdade, a característica primordial de nossa relação com o mundo não é a percepção predicativa, mas a percepção carnal, corporal. “Deve-se, portanto, desde que se resolveu identificar, como se deve, consciência e intencionalidade, resolver-se também a rejeitar a identificação da consciência com a transparência, deve-se resolver a conceber, de imediato e irredutivelmente, o ser consciente como um ente real, isto é, como uma consciência radicalmente encarnada”. (Artigo citado, p. 123.)

Para Merleau-Ponty, a intencionalidade é urna relação dialética onde surge o sentido. “Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido e não podemos fazer nada ou nada dizer que não tenha um nome na história.” (Prefácio P. XIV.) E será o mundo da percepção que se nos revelará como o “berço das significações, sentido de todos os sentidos e o solo de todos os pensamentos”. (Phénomènologie de la Perception, p. 492.) O sentido surge de nossa relação com o mundo e com os outros. E, para Merleau-Ponty, este sentido é inextricavelmente misturado com o não-sentido, uma vez que a redução não é jamais completa.

3. Conclusão

“A mais importante aquisição da Fenomenologia é sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo e o extremo objetivismo em suas noções de mundo ou da racionalidade”. (Prefácio, p. XV.) A noção de mundo tal como foi retomada por Merleau-Ponty se tornou inegavelmente uma das principais contribuições da Fenomenologia para o pensamento filosófico contemporâneo. O mundo fenomenológico, para Merleau-Ponty, não é o ser puro “mas o sentido que transparece na interseção de minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras; ele é, pois, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que faz sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.” (Prefácio,_ p. XV.).

E’ ao mundo que devemos creditar nossa “condenação ao sentido”, não como, contemplação ou construções de significados, mas como inerência na ação histórica e política, “A verdadeira filosofia é a de reaprender a ver o mundo … Nós temos em mãos nossa sorte, tornamo-nos responsáveis por nossa história por meio da reflexão, mas também por uma decisão em que engajamos nossa vida e ‘nos dois casos trata-se de um ato violento que se verifica ao se exercer.” (Prefácio, p. XVI.).

A tarefa da Fenomelonogia é revelar este mundo vivido antes de ser significado, mundo onde estamos, solo de nossos encontros com o outro, onde se descortinam nossa história, nossa.s ações, nosso engajamento, nossas decisões.

Que me seja permitido, para concluir, transcrever um trecho escrito por Ricoeur em seu livro História e Verdade, que revela a importância, o sentido e o alcance da noção de mundo, noção que se aproxima daquela de Merleau-Pont’y, que assegurou enfaticamente à Filosofia a tarefa de nós reaprendermos a vê-lo.

“0 mundo”, afirma Ricoeur, “não é mais a unidade de um objetivo abstrato, de uma forma da razão, mas o horizonte mais concreto de nossa existência. Pode-se tornar isso sensível de maneira muito elementar: é ao nível da percepção que se destaca esse horizonte único de nossa vida de homem. A percepção é a matriz comum de todas as atitudes. É no mundo percebido, no mundo que envolve minha existência carnal, que se erguem os laboratórios e se realizam os cálculos do sábio, as casas, as bibliotecas, os museus,e ás igrejas. Os ‘objetos’ da ciência estão nas ‘coisas’ do mundo: os átomos e os elétrons são estruturas que dão conta deste mundo-vivido-por-mim-carne-e-espírito. O próprio sábio só lhes determina a situação pelos instrumentos que vê, toca, ouve, como vê o Sol erguer-se e deitar-se; como ouve uma explosão, como toca uma flor ou um fruto. Tudo se realiza neste mundo. É também nesse mundo-de-minha-vida que uma estátua é bela, que uma morte é heróica, que uma prece é humilde. É neste mundo-de-minha-vida, e não o mundo da ciência, que é transfigurado em criação aos olhos do salmista: são as árvores que ‘batem palmas’ e não os elétrons ou os neutrons. A doutrina da criação que os judeus elaboraram partindo de sua fé no Senhor da História, partindo de sua experiência da Aliança, é um prosseguimento do mundo da percepção e não do mundo da ciência; é o mundo onde o Sol se ergue e se põe, onde os animais suspiram pela água das fontes; é esse inundo primordial que se transfigura em Palavra criadora. É nesse sentido que o mundo-de-minha-vida é o húmus de todos os meus atos, o solo de todas as minhas atitudes, a camada primordial, anterior, a toda multiplicidade cultural”.

“Mas que significa isso? – Essa unidade também não a posso aprender, dominar, entendê-la e expressá-la em um discurso coerente. Pois essa camada primordial de toda experiência é a realidade prévia de todas as circunstâncias; ela é “sempre-já-antes” e chego tarde demais para exprimir. O mundo é a palavra que tenho na ponta da língua e que jamais pronunciarei; está presente, mas apenas começo a proferi-la, já se tornou mundo do cientista, mundo do artista e mundo de tal artista: mundo de Van Gogh, de Cézanne, de Matice, de Picasso.

“A unidade do mundo é por demais preliminar para poder ser possuída, por demais vivida para ser sabida. Desaparece, mal é reconhecida. É talvez por isso que uma fenomenologia da percepção, que aspirasse a dar-nos a filosofia de nosso-estar-no-mundo, é algo tão difícil quanto a, busca do paraíso. A unidade do mundo a partir da qual se desdobrara’ todas as atitudes é apenas o horizonte de todas essas atitudes.”

[1] Publicado em Temas Fundamentais de Fenomenologia. São Paulo. Editora Moraes. 1984.


© Newton Aquiles von Zuben
Doutor em Filosofia – Université de Louvain
Professor Titular – Faculdade de Educação da UNICAMP
E-mail: navzuben@obelix.unicamp.br