Merleau-Ponty: a obra fecunda
Num curso sobre o conceito de Natureza, ministrado em 1956/57, no Collège de France, Merleau-Ponty afirma que o problema ontológico é aquele ao qual se subordinam todos os outros e por isso mesmo a ontologia não pode ser um teísmo, um naturalismo ou um humanismo, ou seja, não pode identificar o Ser com um dos seres – Deus, o homem ou a Natureza. Essa posição é reafirmada na última nota de trabalho de seu livro inacabado, O visível e o invisível, quando apresenta o plano de seu escrito, escrevendo: “Trata-se precisamente de mostrar que a filosofia não pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas”. Essa nota circunscreve três impulsos filosóficos que serão afastados pelo trabalho merleau-pontyano: o teológico, que coloca o Absoluto como ponto de partida; o humanista, presente tanto nas filosofias da consciência quanto nas antropologias filosóficas, que faz da subjetividade o ponto de partida; e, enfim, o naturalismo cientificista e o de um certo materialismo que, desejoso de corrigir as tendências anteriores, toma o homem e o mundo como processos objetivos impessoais.
Essa última nota de trabalho de O visível e o invisível é paradoxal. Nela podemos encontrar retrospectivamente o projeto que guiou toda a obra merleau-pontyana, mas, simultaneamente, também a criação de um espaço de pensamento novo, que inclui como um de seus momentos a crítica do caminho que o próprio filósofo já havia trilhado. Com efeito, desde suas duas primeiras obras – A estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção –, Merleau-Ponty dera um lugar central à crítica do naturalismo (característico das filosofias empiristas e do positivismo científico) e do humanismo, isto é, da filosofia da consciência (inaugurada com Descartes e prosseguida com o idealismo transcendental Kant e Husserl). Há nessas obras uma incessante interrogação sobre a herança deixada pelo racionalismo moderno, qual seja, a cisão entre o corpóreo – tomado como pura exterioridade das coisas como composição ou mosaico de partes isoláveis – e o pensamento reflexivo – a presença da consciência a si mesma como pura interioridade, transparente em si e para si mesma, capaz de posse intelectual do mundo posto por ela como articulação de conceitos. Fundada na cisão entre sujeito e objeto, a herança deixada pelas filosofias reflexivas foi a separação e oposição entre corpo e alma, matéria e espírito, mundo e consciência, fato e idéia, sensível e inteligível, abandonando o ver e o sentir em nome do pensamento de ver e sentir, abandonando o mundo pela ilusão de um pensamento de sobrevôo.
No entanto, a crítica permanecia ainda no interior do quadro teórico aberto pela fenomenologia de Husserl e pela ontologia fundamental de Heidegger, de sorte que o pensamento merleaupontyano se mantinha no campo da filosofia da consciência e de uma certa antropologia filosófica, embora em momento algum o filósofo tivesse deixado de apontar as dificuldades para mover-se no interior desses parâmetros que, afinal, eram objeto de sua crítica. Somente a partir dos ensaios de Sinais e do livro póstumo, O visível e o invisível, encontramos uma ontologia radical que acertou as contas com a fenomenologia husserliana e a ontologia heideggeriana.
Em A estrutura do comportamento, dedicada ao tema da relação entre corpo e espírito, Merleau-Ponty confronta as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia, e afirma que o interesse pela noção de comportamento advém de suas possibilidades para uma compreensão do mundo humano que escape tanto da redução mecanicista dos acontecimentos psíquicos quanto da assimilação do psiquismo à consciência pura. Graças a essa noção, pensada como estrutura, o filósofo pode distinguir entre a ordem física, a biológica e a humana, ordens que não podem ser reduzidas umas às outras, mas dotadas de especificidade e diferença intrínseca. A elaboração da idéia de ordem humana como instituição da ordem simbólica da cultura efetuada pela percepção, pela linguagem e pelo trabalho, ou como relação com o possível e com o ausente, assegura a irredutibilidade dessa ordem à ordem física e à biológica, mas nem por isso a concebe como uma construção intelectual posta pela consciência reflexiva: o comportamento humano não é uma coisa nem é uma idéia. No entanto, o referencial de Merleau-Ponty ainda conserva ressonâncias da antropologia filosófica, pois o papel central é conferido à consciência perceptiva e não à percepção.
Na Fenomenologia da percepção, a crítica se volta contra o intelectualismo das filosofias da consciência, particularmente as filosofias do idealismo transcendental, que, levando às últimas conseqüências a separação cartesiana entre o corpóreo e o anímico, afirmam que a subjetividade constitui a realidade ou põe o mundo a partir de si mesma. O mundo, escreve Merleau-Ponty, é mais velho do que a consciência e do que nós e a “percepção do mundo funda para sempre nossa idéia da verdade”. Nessa obra, a invocação de um irrefletido e de um “cogito tácito”, anteriores a toda tese posta pelo intelecto, visa encontrar na própria fenomenologia um meio para sair do recinto fechado da consciência de maneira a realizar efetivamente o projeto husserliano de “volta às próprias coisas”. Assim, escreve ele: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo” antes de sua apropriação intelectual e já que a percepção funda nossa idéia da verdade, nosso corpo, enquanto corpo cognoscente, é iniciação ao mistério do mundo e da razão. Graças ao corpo, espaço, tempo, motricidade, sexualidade, linguagem, visão, emoção, pensamento e liberdade surgem na trama dos acontecimentos corporais e destituem a consciência reflexiva de seu papel constituinte soberano ou do insensato “projeto de posse intelectual do mundo”.
Afastar-se da tradição das filosofias da consciência e do empirismo cientificista é buscar uma “razão alargada”, abandonar a ilusão da subjetividade pura e de seu outro lado, a objetividade pura, construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado. É tomar a filosofia não como explicação e sim como interrogação interminável. A interrogação merleau-pontyana se desdobra em três direções: por que a fé perceptiva, experiência mágica, é adesão ao mundo dado? Por que a ciência crê dispor soberanamente de seu objeto enquanto o constrói como se fora um algoritmo, submetendo-o às suas definições e ao seu próprio ideal de medida? Por que a filosofia acredita que o problema filosófico é um problema do conhecimento e do qual deve dar conta uma consciência purificada e legisladora, que discrimina a partir de si mesma o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário?
Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber, a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem são dissimuladas? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevôo é um “projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento”. A crítica desse pensamento possessivo é, simultaneamente, afirmação de que a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um ponto de partida absoluto (Deus, o homem, a Natureza), mas um solo originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados.
O mistério do mundo
Ao distanciar-se de suas primeiras obras e buscar uma nova ontologia, Merleau-Ponty busca o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Sua interrogação vem exprimir-se numa espantosa nota de trabalho de O visível e o invisível: “O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”. Frase cujo prosseguimento reúne emblematicamente arte e filosofia, pois a nota continua: “filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações”.
Por que criação? Porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha à expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha à inteligibilidade, exige o trabalho do pensador. Se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser.
Que laço amarra num tecido único experiência, criação, origem e Ser? Aquele que prende Espírito Selvagem e Ser Bruto.
Que é Espírito Selvagem? É o espírito de práxis, que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim “eu quero”, “eu posso”, mas que não saberia como concretizar isto que ele quer e pode senão querendo e podendo, isto é, agindo, realizando uma experiência e sendo essa própria experiência. O que torna possível a experiência criadora é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas pelo sujeito como intenção de significar alguma coisa muito precisa e determinada, que faz do trabalho para realizar a intenção significativa o próprio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminação, levando à expressão o que ainda e nunca havia sido expresso.
O Espírito Selvagem é atividade nascida de uma força — “eu quero”, “eu posso” — e de uma carência ou lacuna que exigem preenchimento significativo. O sentimento do querer-poder e da falta suscitam a ação significadora que é, assim, experiência ativa de determinação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prática como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de experimentá-lo.
Mas, por que Ser Bruto?
O Ser Bruto é o ser de indivisão, que não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Indiviso, o Ser Bruto não é uma positividade substancial idêntica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas. É por diferença que há o vermelho ou o verde entre as cores, pois uma cor não é um átomo colorido e sim modulação de uma diferença qualitativa de luz e sombra. É por diferença que há o alto e o baixo, o próximo e o distante, fazendo existir o espaço como qualidade ou pura diferenciação de lugares. É por diferença entre sons e entre signos que uma língua existe e se constitui como sistema expressivo, pois sons e signos não são átomos positivos e isoláveis, mas pura relação, posição e oposição. Ser Bruto, não sendo um positivo, também não é um negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positividade de um visível, de um dizível, de um pensável, como a nervura secreta que sustenta e conserva unidas as partes de uma folha, dando-lhe a estrutura que mantém diferenciados e inseparáveis o direito e o avesso: é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer porque sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável.
O Ser Bruto é a distância interna entre um visível e outro que é o seu invisível, entre um dizível e outro que é o seu dizível, entre um pensável e outro que é o seu impensável. É um “sistema de equivalências” diferenciado e diferenciador pelo qual há mundo. Desatando os liames costumeiros entre as coisas, o Ser Bruto abre acesso a uma relação originária entre elas como diferenças qualitativas que se exibem e se interpretam a si mesmas enquanto famílias das cores, das texturas, dos sons, dos odores que reenviam à substancialidade impalpável do que as faz vir a ser. Se o Ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência, entretanto, não deposita toda a iniciativa do vir-a-ser na atividade do Espírito Selvagem, mas, como Ser Bruto, compartilha daquele o trabalho criativo, dando-lhe o fundo do qual e no qual a criação emerge.
Ser Bruto e Espírito Selvagem estão entrelaçados, abraçados e enlaçados: o invisível permite o trabalho de criação do visível; o indizível, o do dizível; o impensável, o do pensável. Merleau-Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar instituintes que empregam o instituído – a cultura – para fazer surgir o jamais visto, jamais dito, jamais pensado – a obra.
Abraçados e enlaçados, Espírito Selvagem e Ser Bruto são a polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne: habitadas por significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são fulgurações de sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo não é uma máquina de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior, mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se elas e nós nos comunicamos não é porque elas agiriam sobre nossos órgãos dos sentidos e sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em idéias e conceitos, mas porque elas e nós participamos da mesma Carne.
A Carne do Mundo é o que é visível por si mesmo, dizível por si mesmo, pensável por si mesmo, sem, contudo, ser um pleno maciço, e sim, paradoxalmente, um pleno poroso, habitado por um oco pelo qual um positivo contém nele mesmo o negativo que aspira por ser, uma falta no próprio Ser, fissura que se preenche ao cavar-se e que se cava ao preencher-se. Não é, pois, uma presença plena, mas presença habitada por uma ausência que não cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual não poderia vir a ser. A Carne do Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível, do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por si mesmas como estofo do mundo.
Ser de indivisão, o Ser Bruto é o que não cessa de diferenciar-se por si mesmo, duplicando todos os seres, fazendo-os ter um fora e um dentro reversíveis e parentes. Assim, se é por ele que somos dados ao Ser, como a criança é dada à luz ao emergir do interior do corpo materno, no entanto, é por nós que ele se manifesta, como no instante glorioso em que o pintor faz vir ao visível um outro visível, que recolhe o primeiro e lhe confere um sentido novo. O mundo da cultura, fecundidade que passa, mas não cessa, é o parto interminável do Ser Bruto e do Espírito Selvagem.
Buscá-los é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas, por outro , interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido. “A ciência manipula as coisas e recusa-se a habitá-las”, lemos na abertura de seu último ensaio, O olho e o espírito. Empregando instrumentos técnicos, constrói o mundo como Objeto em Geral, destinado a ser apenas aquilo que lhe é permitido ser pelas operações que o construíram. A filosofia, por seu turno, erige-se em Sujeito Universal que, de lugar algum e de tempo nenhum, ergue-se como puro olhar intelectual desencarnado que contempla soberanamente o mundo, dominando-o por meio de representações construídas pelas operações intelectuais. A tradição filosófico-científica e seu efeito principal — a tecnologia como domínio instrumental dos constructos — é abandono do mundo, mais velho do que nós e do que nossas representações, e abandono do pensamento encarnado num corpo, que pensa por contato e por inerência às coisas, alcançando-as de modo oblíquo e indireto.
A experiência: atividade e passividade simultâneas
Se o sair de si e o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou interioridade e a consciência está originariamente encarnada, a experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se associam mecanicamente para formar percepções, imagens e idéias; nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto é, atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo.
“É à experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não é nós”, lemos numa nota de O visível e o invisível. É exercício do que ainda não foi submetido à separação sujeito-objeto. É promiscuidade das coisas, dos corpos, das palavras, das idéias. É atividade-passividade indiscerníveis. Abertura para o que não é nós, excentricidade muito mais do que descentramento, a experiência, escreve Merleau-Ponty em “O olho e o espírito”, é “o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do Ser, fechando-me sobre mim mesmo somente quando ela chega ao fim”, isto é, nunca.
Debrucemo-nos um instante sobre essa curiosa expressão: fissão no Ser.
A tradição filosófica jamais conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser ao mundo. Fugindo dela ou buscando domesticá-la, a filosofia sempre procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e portanto, neutralizada: tida como região do conhecimento confuso ou inacabado, a experiência como exercício promíscuo de um espírito encarnado só poderia tornar-se conhecível e inteligível se fosse transformada numa representação ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradição, tanto empirista como intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experiência, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experiência exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graças à separação, pensá-la e explicá-la, de sorte que em lugar da compreensão da experiência, obteve-se a experiência compreendida, um discurso sobre ela para silenciá-la enquanto fala própria.
Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser.
Fissão: as cosmologias e a física nuclear decifram a origem do universo pela explosão da massa em energia cuja peculiaridade está em que as novas partículas produzidas são de mesma espécie das que as produziram, de tal maneira que o próprio Ser divide-se por dentro sem se separar de si mesmo, diferencia-se de si mesmo permanecendo em si mesmo como diferença de si a si.
Quando invoca a experiência do pintor, ou do músico ou do escritor, para contrapô-las ao modo como a filosofia interpreta a experiência, Merleau-Ponty se demora naqueles instantes em que ver, ouvir ou falar-escrever atravessam a carapaça da cultura instituída e desnudam o originário de um mundo visível, sonoro e falante. Ao se referir a esses instantes com a expressão fissão no Ser, busca significá-los como divisão no interior da indivisão:a experiência se efetua como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz vidente sem sair da visibilidade e um vidente se faz visível (o quadro) sem sair da visibilidade; no qual um ouvinte (o corpo do músico) se faz sonoro sem sair da sonoridade e um sonoro (a música) se faz audível sem sair da sonoridade; no qual um falante (o corpo do escritor) se faz dizível sem abandonar a linguagem e um dizível (o texto) se faz falante sem sair da linguagem.
A experiência é cisão que não separa — o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para cercar aquilo que se diz sem ele —e é indivisão que não identifica — Cézanne não é a Montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo.
O que é a experiência da visão? É o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência da linguagem? É o ato de dizer como advento simultâneo do dizente e do dizível, graças ao silêncio que misteriosamente os sustenta. O que é a experiência do pensamento? É o ato de pensar como advento simultâneo do pensamento e do pensável, graças ao impensado que misteriosamente os sustenta. A experiência é o que em nós se vê quando vemos, o que em nós se fala quando falamos, o que em nós se pensa quando pensamos. Nenhum dos termos é origem: visível, dizível e pensável não existem em si como coisas ou idéias; vidente, falante e pensante não são operações de um sujeito como pura consciência desencarnada; visível, dizível e pensável não são causas da visão, da linguagem e do pensamento, assim como o vidente, o falante e o pensante não são causadores intelectuais do ver, falar e pensar. São simultâneos e diferentes, são reversíveis e entrecruzados, existem juntos ou coexistem sustentados pelo fundo não visível, não proferido e não pensado.São o originário porque a origem é, aqui e agora, a junção de um dentro e um fora, de um passado e de um porvir, de um antes e um depois, proliferação e irradiação de um fundo imemorial que só existe proliferando-se e irradiando-se.
A experiência é diferenciadora: distingue entre vidente e visível, tocante e tocado, falante e falado, pensante e pensado, assim como distingue entre ver e tocar, ver ou tocar e falar, ver ou tocar, falar e pensar. Ver é diferente de tocar, ambos são diferentes de falar e pensar, falar é diferente de ver e pensar; pensar, diferente de ver, tocar ou falar. Abolir essas diferenças seria regressar à Subjetividade como consciência representadora que reduz todos os termos à homogeneidade de representações claras e distintas. Porém, a diferenciação própria da experiência não é posta por ela: manifesta-se nela porque é o próprio mundo que se põe a si mesmo como visível-invisível, dizível-indizível, pensável-impensável. No entanto, a cisão dos termos, que os distingue sem separá-los e o une sem identificá-los, só é possível porque o mundo como Carne é coesão interna, a indivisão que sustenta os diferentes como dimensões simultâneas do mesmo Ser. O mundo é simultaneidade de dimensões diferenciadas.
A experiência é o fundo que sustenta a manifestação da própria experiência, sem o qual ela não existiria – como a figura não existe sem o fundo – e graças ao qual os termos que a constituem são reversíveis – como o fundo que se torna figura e a figura que se torna fundo. Esse fundo imemorial, essa ausência que suscita uma presença, é inesgotável: não há uma visão total que veria tudo e completamente, pois para ver é preciso a profundidade e esta nunca pode ser vista; não há uma linguagem total que diria tudo e completamente, pois para falar é preciso o silêncio sem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; não há um pensamento total que pensaria tudo e completamente, pois para pensar é preciso o impensado que faz pensar e dá a pensar. Assim, se o fundo é uma ausência que pede uma presença, um vazio que pede preenchimento, ele é também, e simultaneamente, um excesso: o que nos leva a buscar novas expressões é o excesso do que queremos exprimir sobre o que já foi expresso. A cultura sedimenta e cristaliza as expressões, mas o instituído carrega um vazio e um excesso que pedem nova instituição, novas expressões.
O mistério da linguagem
Filosofia e ciência sonham com o ideal de uma linguagem pura, transparente; dócil aos conceitos e às operações científicas, puramente instrumental, cuja função seria a de traduzir perfeitamente idéias, em si mesmas silenciosas. Sonham com uma linguagem que dissesse tudo e o dissesse tão completamente que seria a perfeita transcrição de um texto original cuja expressão estivesse terminada. Sonham com uma língua bem-feita, reduzida a algorítimos unívocos como os da matemática, direta, completa e sem ambigüidades.
O sonho da filosofia e da ciência faz com a linguagem o mesmo que fez com o sensível: perde-a, como o perdeu.
Como o sensível, como o visível, a linguagem também é misteriosa.
“Num certo sentido, a linguagem só tem a ver consigo mesma: no monólogo interior como no diálogo, não há pensamentos, são palavras que as palavras suscitam e, na medida mesma em que pensamos mais plenamente, as palavras preenchem tão exatamente nosso espírito, que não lhe deixam um canto vazio para pensamentos puros e para significações que não sejam linguageiras. O mistério é que, no exato momento em que a linguagem está assim obcecada consigo mesma, é lhe dado, como que por excesso, abrir-nos para uma significação. Num instante, esse fluxo de palavras se anula como ruído, lança-nos em cheio no que queremos dizer e, se respondemos, é ainda por palavras, sem querer: não pensamos nos vocábulos que dizemos que nos dizem, como não pensamos na mão que apertamos”.
Som e sinal, a linguagem é mistério porque presentifica significações, transgride a materialidade sonora e gráfica, invade a imaterialidade e, corpo glorioso e impalpável, acasala-se com o invisível. Não é instrumento para traduzir significações silenciosas. É habitada por elas. Não é meio para chegar a alguma coisa, mas modo de ser. Mais do que isso. É um ser nela mesma. O sentido não é algo que preexistiria à palavra, mas movimento total de uma fala. Quando nos entregamos a ela, o sentido vem. Quando queremos agarrá-lo sem ela, ele nunca vem. Rigorosamente, nosso pensamento está sempre na ponta da língua.
Mas como a linguagem significa? De modo indireto e alusivo. Não designa um sentido, presentifica-o através dos signos, porém sempre sobre um fundo primordial e inesgotável de silêncio. Sem dúvida, temos o sentimento de que nossa língua exprime completa e diretamente as significações. Quando em inglês se diz “The man I love”, nossa tendência espontânea é julgar que falta na frase inglesa algo que existe na portuguesa e que a faria exprimir mais completamente o sentido – “O homem que eu amo”. Todavia, esse sentimento de falta alheia e completude nossa deve-se apenas ao fato de que a nossa língua nos insere num mundo cultural no qual ela parece exprimir completamente e não porque realmente o faça ou possa fazê-lo. É por ser indireta e alusiva, totalidade aberta e móvel sobre um fundo interior de silêncio, que a palavra é expressiva: “a linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa (…) significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se fazer e refazer por ele”.
Porém, que linguagem é esta cuja força existe somente quando não se reduz a ser mera designação de coisas nem mera cópia de pensamentos? Não é a linguagem empírica e costumeira de nossa vida cotidiana, já instituída em nossa cultura. É a linguagem criadora, operante, instituinte. É a linguagem do escritor quando este imprime uma torção na linguagem existente, obriga-a a uma “deformação coerente”, rouba-lhe o equilíbrio para fazê-la significar e dizer o novo. “Como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: só tem a ver com a linguagem e é assim que, subitamente, encontra-se rodeado de sentido”. O mistério da linguagem está em que só exprime quando se faz esquecer e só se deixa esquecer quando consegue exprimir. Quando sou cativada por um livro, não vejo letras sobre uma página, não olho sinais, mas participo de uma aventura que é pura significação e, no entanto, ele não poderia oferecer-se a mim senão como linguagem. Um livro, escreve Merleau-Ponty, é “uma máquina infernal de produzir significações”.
Preguiçosamente, começo a ler um livro. Contribuo com alguns pensamentos, julgo entender o que está escrito porque conheço a língua e as coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experiências ali relatadas. Escritor e leitor possuem o mesmo repertório disponível de palavras, coisas, fatos, experiências, depositados pela cultura instituída e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porém, algumas palavras me “pegam”. Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sentido comum e costumeiro e elas me arrastam, como num turbilhão, para um sentido novo, que alcanço apenas graças a elas. O escritor me invade, passo a pensar de dentro dele e não apenas com ele, ele se pensa em mim ao falar em mim com palavras cujo sentido ele fez mudar; arrasta-me do instituído ao instituinte. Neste momento, uma aquisição foi feita, e o livro, doravante, pertence às significações disponíveis da cultura. Se eu também for escritora, uma tradição foi instituída e eu a recolherei para, ao retomá-la, reabrir a linguagem numa nova instituição.
Como a pintura, a literatura é retomada de uma tradição mais antiga do que ela, a do mundo perceptivo, e é abertura de uma nova tradição, a da obra como cultura. Assim como o pintor tateia entre linhas e cores para fazer surgir no visível um novo visível, assim também o escritor tateia entre sons e sinais para fazer surgir na linguagem uma nova linguagem. Essas operações instituem o mundo cultural como mundo histórico no qual o momento instituinte se enraíza no instituído, abrindo uma nova instituição, que se tornará, a seguir, instituída e uma tradição disponível para todos.
Cultura e história
Exprimir é empregar os meios disponíveis oferecidos pelo instituído – o mundo da percepção e da cultura – para descentrá-los e deformá-los, instituindo uma nova coerência e um novo equilíbrio que, a seguir, serão retomados numa nova expressão, que os recolheu como falta e excesso do que se desejava exprimir. Sob essa perspectiva, perde sentido a oposição entre o presente como totalidade simultânea e o tempo como mero escoamento de instantes: estamos mergulhados numa totalidade simultânea e aberta porque nela o presente, como falta e excesso, pede um porvir, exigindo o futuro não como finalidade, mas como restituição instituinte do passado.
Eis porque a história das obras de arte e das obras de pensamento não é uma história empírica de acontecimentos, nem uma história racional-espiritual de desenvolvimento ou progresso linear: é uma história de adventos. Por esse motivo, escreve Merleau-Ponty, nem sempre o museu e a biblioteca são benfazejos. Por um lado, criam a impressão de que as obras estão acabadas, existindo apenas para serem contempladas, e que a unidade histórica das artes e a do pensamento se fazem por acumulação e reunião de obras; por outro, substituem a história como advento pela hipocrisia da história pomposa, oficial e celebrativa, que é esquecimento e perda da forma nobre da memória. É preciso ir ao museu e à biblioteca como ali vão os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de uma tarefa interminável em que cada começo é promessa de recomeço.
Qual a diferença entre acontecimento e advento, esquecimento e memória? Se o tempo for tomado como sucessão empírica e escoamento de instantes, ou se for tomado como forma a priori da subjetividade transcendental, que organiza a sucessão num sistema de retenções e protensões, não haverá senão a série linear de acontecimentos. O acontecimento fecha-se em sua diferença empírica ou na diferença dos tempos, esgota-se ao acontecer. O advento, porém, é o excesso da obra sobre as intenções significadoras do artista; é aquilo que sem o artista ou sem o pensador não poderia existir, mas é também o que eles deixam como ainda não realizado, algo excessivo contido no interior de suas obras e experimentado como falta pelos que virão depois deles e que retomarão o feito através do não-feito, descobrindo o por-fazer solicitado pela obra. O advento é aquilo que, do interior da obra, clama por uma posteridade, pede para ser acolhido, exige uma retomada porque o que foi deixado como herança torna-se doação, o dom para ir além dela. Há advento quando há obra e há obra quando o que foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá a pensar.
A história do advento debruça-se sobre o artista e o pensador no trabalho, quando, num só gesto, agarram a tradição e instituem uma outra, que será agarrada pelos pósteros. No trabalho, artistas e pensadores reconciliam todas as obras – as suas e as dos outros – porque cada uma delas exprime uma existência inteira e não uma coleção de objetos finitos e gestos vãos. A história do acontecimento, ao contrário, possui duas maneiras de perder as obras: ou quebrando a temporalidade imanente que as sustenta, submetendo-as ao tratamento analítico para, depois, tentar reuni-las pela síntese intelectual (como se a unidade da cultura viesse da soma sintética de obras despedaçadas pelo entendimento); ou dando a cada uma delas um lugar num sistema geral do desenvolvimento do Espírito, que permite a lembrança delas sob a condição expressa de roubar-lhes a alma, isto é, o essencial. Essa memória é esquecimento e o esquecimento, lemos numa nota de trabalho de O visível e o invisível, é desdiferenciação, perda de relevo e de contorno do passado, celebração pomposa das obras como pura repetição e espetáculo.
Ao contrário, a forma nobre da memória é a retomada das obras pelos artistas e pensadores, que as retomam para não repeti-las, mas para criar novas. A unidade temporal das artes, da literatura, da filosofia é a compreensão, obliqua e indireta, que cada artista, escritor ou pensador possui de seu trabalho como momento de uma tarefa única e, por isso mesmo, infinita. Quando foi feito o primeiro desenho na parede da caverna, foi prometido um mundo a pintar que os pintores não fizeram senão retomar e reabrir. Quando foi proferido o primeiro canto e o primeiro poema, foi prometido um mundo a cantar e a dizer que músicos e poetas não fizeram senão retomar e reabrir. Quando foi feito o primeiro gesto cerimonial, foi prometido um mundo a dançar e a esculpir que dançarinos e escultores não fizeram senão retomar e reabrir. Quando o primeiro pensamento foi expresso, foi prometido um mundo a pensar que cientistas e filósofos não fizeram senão retomar e reabrir.
A história como esquecimento, historicidade da morte, toma a obra acabada como prodígio a ser contemplado – é a história vista pelo mero espectador. Ao contrário, a história como forma nobre da memória, historicidade da vida, é a que capta as obras como excesso do que se queria fazer, dizer e pensar, excesso que abre aos outros a possibilidade da retomada e da criação como carência e vazio no interior do excesso – é a história sempre aberta efetuada pelo trabalho dos artistas, escritores e pensadores.
A origem da verdade não está fora do tempo, mas na abertura de cada momento do conhecimento para aqueles que irão retomá-lo e transformá-lo em seu próprio sentido. A história das artes, da literatura, da ciência, da filosofia e da ação política é maturação de um futuro e não sacrifício do presente por um futuro desconhecido. A regra, e única regra, de ação para o artista, o escritor, o pensador e o político não é que sua ação seja eficaz, e sim que seja fecunda.
Marilena Chauí
é filósofa e professora livre-docente da USP
há 14 anos atrás
Adorei gostaria de ler com mais atenção. Pode enviar para mim.