O tema “Deus” deixa sua marca em toda a história da humanidade, sendo capaz de despertar nela uma profunda paixão até os dias de hoje. Até mesmo no discurso dos ateus, em particular Nietzsche, que falam sobre a “morte de Deus” existe uma busca pela eternidade, e a questão de “Deus” se levanta com toda a força em nosso meio.

        Ratzinger (2005, p.80) lembra que existem três formas em que o tema Deus aparece na história: o monoteísmo [crença em um só Deus], o politeísmo [crença pagã mitológica em muitos deuses] e o ateísmo [descrença em Deus], e, portanto, com três de modos de exprimi-las: “Existe um Deus”, “Existem muitos deuses”, “Não existe Deus”. E nestas três formas, que segundo o atual papa Bento XVI, até mesmo no ateísmo e no politeísmo não se nega a unidade do ser em tudo o que existe.

O marxismo, a forma mais atuante do ateísmo, chega até mesmo a afirmar terminantemente essa unidade do ser em tudo o que existe ao declarar que todo o ser é matéria; é verdade que, com isso, aquele uno, que é o próprio ser, se distingue como matéria, totalmente da ideia antiga do absoluto que está ligada à ideia de Deus, mas ao mesmo tempo ganha certos traços que ressaltam o seu caráter absoluto, evocando dessa maneira novamente a ideia de Deus (Ratzinger, 2005, p.81).

        O problema de Karl Marx foi colocar o absoluto como matéria, despojado de todo e qualquer predicado pessoal, assim, “Deus não estaria atrás dele [do ser humano], como aquele que o precede, e sim à sua frente”, ou seja, o “Deus” marxista seria tudo aquilo que o homem cria pensando em um futuro melhor. É aí que o marxismo se auto-desintegra, sempre quando tenta se impor como filosofia, pois coloca sua confiança na matéria e não na inteligência do Deus-Transcendente, de onde procedem todas as coisas. E quando se trata da origem dos valores, é impossível colocá-la nos entes materiais e também seria inadequado crer que estes conceitos éticos poderiam ter origem na própria razão humana. Pensando assim, o marxismo, quando “cai em si” se vê sem um fundamento, um alicerce moral que pudesse sustentar suas teses. Por causa disso, fracassa como filosofia e como forma de inspiração para regimes políticos socialistas que possam se sustentar com sucesso em nossa sociedade.
        Para Ratzinger (2005, p.80-81), mesmo o politeísmo, também pode se relacionar com o monoteísmo e ateísmo, pois mesmo acreditando em muitos deuses, “está em algum lugar, o ser uno, ou seja, que o ser é, afinal, um só ou, no máximo, o eterno conflito de um antagonismo primordial”.
        A grande dificuldade para o politeísmo se sustentar é a sua preferência por uma fé radical desprovida de sólidos argumentos racionais. Assim, fica muito difícil deixar de associar esta forma de enxergar Deus às superstições religiosas. Por causa disso, a mitologia greco-romana pereceu, pois o cristianismo, ao se desenvolver e crescer nestas culturas optou pelo Deus dos filósofos. Se os cristãos tivessem optado pelo Deus da religião dos politeístas pagãos, o mesmo destino mortal poderia ocorrer com a filosofia cristã.
        Foi feita uma opção pela razão contra a mitologia habitual da religião politeísta grega e romana, em favor da verdade da unidade do ser. Porém, para não substituir a idolatria dos deuses pagãos por uma nova idolatria (da razão), a fé cristã conferiu ao Deus dos filósofos um significado totalmente novo, pois ao tirá-lo da esfera acadêmica, transformou-o profundamente:

Esse Deus que antes era visto como um ser neutro, como o conceito supremo e conclusivo; esse Deus que é considerado o puro ser e o puro pensamento que gira eternamente num círculo fechado em torno de si mesmo, sem chegar jamais até o ser humano e seu mundo pequeno; esse Deus dos filósofos [que é o Deus de Aristóteles] cuja eternidade e imutabilidade pura exclui de antemão qualquer relação com o mutável e o devir [ser humano]; esse Deus passa a aparecer agora, para a fé, como Deus dos homens, que não é apenas o pensamento do pensar e a matemática eterna do universo, mas também “ágape” e poder do amor criativo (Ratzinger, 2005, p. 107).

        De acordo com Ratzinger (2005, p.108), Deus dos numerosos textos do Antigo Testamento e também dos evangelhos é antropomorfo, pois este Ser Divino, por amor à humanidade, quis encarnar na pessoa de Jesus Cristo para se relacionar pessoalmente conosco: “Ele tem as paixões de um ser humano, Ele se alegra, procura, espera, vai ao encontro. Ele não é a geometria insensível do universo, não é a justiça neutra que paira acima das coisas, insensível ao coração e seus afetos. Esse Deus tem um coração, Ele ama com toda a excentricidade típica de uma pessoa que ama”.
        Assim, segundo Ratzinger (2005, p. 110), “supomos, portanto, sem nos dar conta disso, que o pensamento puro é maior do que o amor. Mas é justamente nesse ponto que a mensagem do evangelho e a imagem cristã de Deus corrigem a filosofia, ensinando-nos que o amor é mais sublime do que o mero pensamento”.
        As relações entre razão e fé devem ser perfeitamente harmônicas, pois ambas são caminho para um mesmo objeto: Deus. São caminhos diversos, mas atingem a mesma realidade. A primeira de forma indireta mediante o uso da razão que nos foi dada por Deus, e a segunda mediante uma adesão ao conteúdo da fé, que também é um dom de Deus. Por isso, conceber que a razão e fé são contraditórias é o mesmo que dizer que Deus também o é, uma vez que ambas provêm do mesmo Deus. João Paulo II sublinha esta distinção e defende a complementaridade entre ambas, destacando aquele que foi o primeiro a conseguir analisar esta questão, São Justino.” (Veiga, 2009, p.25, 26).
        Citando Nietzsche, Ratzinger (2005, p.79) diz “que todo prazer anseia por eternidade, mas se experimenta como efêmero”, por isso o ser – humano não se basta a si próprio, e só consegue encontrar-se passando além de si mesmo, movendo-se ao encontro do totalmente outro e infinitamente maior.
        Nietzsche, que era ateu, admitia o anseio humano pelo eterno, contudo a sua busca era vazia de sentido, pois se baseava na circularidade da própria razão, representada pela consciência que sai de si e volta para si mesmo, ou seja, o eterno está no próprio eu. A sua relação com o absoluto [Deus] só poderia se dar de forma imanente, quer dizer, na relação com o mundo e a própria razão, sem qualquer movimento ascético em direção ao Ser Transcendente.
        Segundo Ratzinger (2005, p.79), também buscar no outro não traz a felicidade, “porque todo tu é, no fundo, uma nova desilusão; chega-se, então, ao ponto em que encontro nenhum é capaz de vencer a solidão derradeira: justamente o encontrar e o ter encontrado voltam a remeter o ser humano à sua solidão, suscitando, finalmente, aquele anseio pelo tu absoluto [Deus] que mergulha realmente nas profundezas do próprio eu”.
        Portanto, ao trocar a filosofia cristã (baseada em uma fé racional) por um pensamento radicalmente racional, sem a presença da fé, que poderia ser chamado de filosofia racional pura, excluir-se-ia a possibilidade de um relacionamento transcendental com Deus.
        Joseph Ratzinger (2005, p.78), diz que “está na hora de parar de ver em Deus aquele tapa-buraco colocado nos limites de nossas possibilidades que só é chamado quando nós mesmos estamos numa situação sem saída”. Para que isso ocorra, os filósofos que não tem fé precisam achar uma solução para um impasse em que eles mesmos se colocaram no que diz respeito à origem dos valores. Segundo Paul Ricouer (p.438), a filosofia está condenada a oscilar entre uma impossível criação dos valores [pelo homem] e uma impossível intuição dos valores [por Deus]. Ora, se para a filosofia racional pura os valores não foram criados pelo homem e nem foram infundidos no intelecto humano pela inteligência divina, de onde eles vieram?

“Não se deve misturar tanta água da filosofia no vinho da Sagrada Escritura, que o vinho se transforme em água; seria um péssimo milagre, uma vez que lemos que Cristo transformou a água em vinho e não o contrário” (São Boaventura, apud Nascimento, 2004, p.60).

“Quando, de dois elementos [água e vinho], um passa ao domínio do outro, não se julga que haja mistura, mas sim quando a natureza de ambos se altera. Daí, aqueles que se servem dos ensinamentos filosóficos na sagrada doutrina reconduzindo-os ao acatamento da fé, não misturam água ao vinho, mas transformam a água em vinho”. (São Tomás de Aquino, apud Nascimento, 2004, p.60).


Rogério de Paula e Silva
Disciplinas isoladas – Filosofia

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NASCIMENTO, Carlos Arthur. O que é filosofia medieval? São Paulo: Brasiliense, 2004.
RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. Preleções sobre o símbolo apostólico com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2005.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: Ensaios de hermenêutica. Porto: Rés, s/d.
VEIGA, Bernardo. É impossível o diálogo inter-religioso? O pensamento de Bento XVI e a visão de Raimundo Lúlio sobre o diálogo inter-religioso. São Paulo: Instituto de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2009.