o Meio-Termo como Virtude no livro IV da Ética a Nicômaco de Aristóteles
Como um desdobramento dos livros anteriores, no Livro IV da Ética a Nicômaco, Aristóteles coloca a virtude ética como a aquisição da medida justa entre dois extremos. Para ele, a virtude está sempre em fazer a coisa justa no momento e do modo oportunos. A ética do meio-termo é, pois, o tema central tratado neste livro, que o autor explicita e exemplifica falando, de início, da liberalidade, que é o meio-termo entre a avareza e a prodigalidade.
A liberalidade é um valor relacionado com o dar riquezas. O homem liberal é aquele que dá para a pessoa certa, a quantidade certa, no momento certo, e isso sem arrependimento da doação feita. Todos esses elementos caracterizam um ato de nobreza. Além disso, ele tem como fonte de seus bens apenas aqueles lícitos, dos quais adquire sem avidez e apenas por necessidade. Já o pródigo, segundo o filósofo, é aquele que se arruína, esbanjando suas riquezas sem se preocupar em repô-la. O pródigo é, contudo superior ao avaro, uma vez que acaba sendo corrigido de seu vício pela pobreza que inevitavelmente chega. O pródigo não é considerado um mau-caráter, mas apenas um tolo, pois beneficia a muitos, inclusive àqueles que não convém. O avaro, por sua vez, beneficia somente a si mesmo. Mas
A maioria dos pródigos, como já se disse, também tomam de fontes indébitas, e a esse respeito são avaros. Adquirem o hábito de tomar porque desejam gastar, e isso não lhes é fácil em razão de não tardarem a minguar as suas posses. São, por isso, forçados a buscar meios em outras fontes. Ao mesmo tempo, como não dão nenhum valor à honra, tomam indiferentemente de qualquer fonte: pois têm o apetite de dar e não lhes importa a maneira nem a fonte de onde procede o que dão. Por isso não dão com liberalidade: não o fazem com nobreza, nem tendo esta em vista, nem da maneira que devem. Às vezes enriquecem os que deveriam ser pobres, não dão nada às pessoas dignas de estima, e muito aos aduladores ou aos que lhes proporcionam algum outro prazer. (ARISTÓTELES, 1991, p. 63).
Neste trecho em particular, Aristóteles se mostra bastante atual na análise do caráter humano. O Estagirita, contudo, com a concepção de pólis de seu contexto sócio-histórico, jamais imaginaria que esse tipo de vício que acaba de descrever seria característica comum dos governantes em um futuro distante.
A segunda virtude tratada por Aristóteles é a magnificência, que implica em um gasto apropriado que envolve grandes quantias. O magnificente é sempre liberal, mas o liberal nem sempre é magnificente: o magnificente é o liberal que gasta grandes quantidades tendo sempre como objetivo último a honra. A despesa justa é considerada virtuosa, de modo que não se pode esperar a magnificência de um homem pobre, ainda que este seja liberal. São gastos magnificentes aqueles relacionados às ofertas votivas aos deuses ou aos preparos de festas cívicas.
Aquele que gasta além do justo não é magnificente, mas extravagante, uma vez que ostenta o mau-gosto: é o caso, por exemplo, de quem oferece um jantar de amigos nas proporções de uma festa de casamento. No extremo oposto, temos o homem mesquinho: aquele que calcula para poder gastar o mínimo possível e, mesmo assim, tem sempre a impressão de estar gastando mais do que devia.
A magnanimidade se refere à grandeza. O homem que merece pouco e assim se considera, é um temperante, e não magnânimo. Aquele que se julga digno de grandes coisas sem sê-lo, por outro lado, é vaidoso. O magnânimo deve ser não só bom, mas o melhor: as honras nunca estão suficientemente à sua altura, e por saber disso, o magnânimo é desdenhoso. O magnânimo recebe as honras com moderado prazer, e não considera as desonras. Também não gosta de receber benefícios. Mostra-se altivo em relação aos poderosos e ricos, e despretensioso em relação aos pobres, posto que é de mau-gosto exibir força em oposição aos fracos. Suas ações são poucas, mas sempre grandes e notáveis.
Nos extremos da magnificência temos a humildade e a vaidade. O humilde é aquele que se priva daquilo que merece por se considerar indigno. Os vaidosos são tolos que se consideram merecedores daquilo que não merecem.
Em seguida, Aristóteles fala sobre o desejar pouco e o desejar muito a honra. Não há um nome para o meio-termo do desejo de honra: “Os homens desejam a honra não só mais, como também menos do que devem; logo, é possível desejá-la também como se deve. Em todo caso, é essa disposição de caráter que se louva, e que é um meio-termo sem nome no tocante à honra” (ARISTÓTELES, 1991, p. 71).
Aristóteles, na seqüência, fala do meio-termo entre a irascibilidade e a pacatez. São considerados tolos aqueles que não se irritam de nenhuma forma, assim como aqueles que o fazem em demasia. O pacato age como o escravo. A ira desproporcional também é considerada uma tolice. O filósofo encontra dificuldade em colocar o excesso e a deficiência em relação à calma. É difícil definir como, com quem, com que coisa e por quanto tempo é justo irar-se para ficar no meio-termo entre a irascibilidade e a pacatez. Qual a medida da ira?
Continuando, Aristóteles fala da virtude que é o meio-termo entre a atitude daquele que tudo critica e a do que, com medo de magoar, de nada reclama. O Estagirita não encontra um nome para essa virtude, mas coloca que se trata de uma virtude que se aproxima bastante da amizade, sendo diferente dela pelo fato de não implicar nenhuma espécie de paixão ou amor pelo outro. Aquele que sempre faz vistas grossas em relação a algum defeito alheio é um obsequioso que procura proporcionar o máximo de prazer ainda que imerecido. O que assim age com interesses próprios é um bajulador, um adulador. Aquele que a tudo se opõe é um grosseiro e altercador.
Qual seria o meio-termo entre a arrogância e a falsa modéstia? Aristóteles também não encontra um nome para essa virtude, mas está seguro de sua existência: ela é, para ele, a busca da verdade ou da falsidade pelo indivíduo. Aquele que incorre na falsa modéstia diminui aquilo que possui. O arrogante, por sua vez, aumenta injustamente aquilo que possui. Ambos os extremos agem segundo a falsidade que, por si mesma, é vil. A verdade é nobre e digna.
Em seguida, Aristóteles fala do meio-termo entre a falta e o excesso de humor. Há entre os homens aqueles que se riem de tudo, considerados “bobos” ou “palhaços” e aqueles que não suportam brincadeiras, tidos como “rústicos”. O homem virtuoso entre esses extremos é o espirituoso. Também faz parte dessa virtude o tato: é justo brincar com a coisa certa, do jeito certo e na medida certa, de modo digno e bem-educado, de modo a não se expor e nem expor o outro ao ridículo: “os chistes de um homem bem educado diferem dos de um homem vulgar, assim como os de uma pessoa instruída diferem dos de um ignorante”. O chocarreiro é escravo do riso fácil que não poupa nem a si mesmo.
Na parte final do Livro IV, Aristóteles discorre sobre a vergonha. A vergonha é mais um sentimento do que uma disposição de caráter. A vergonha não fica bem nos velhos, sendo restrita à juventude. Isso porque os jovens agem de acordo com os impulsos e por isso erram mais, tendo mais ocasião de envergonhar-se. A vergonha serve para refrear os jovens e nesse caso, é louvável. No velho ela não é louvável porque os anos já lhe ensinaram a ser virtuoso. A vergonha não é característica de um homem bom, mas é característica que acompanha as más ações. Só se pode envergonhar de ações voluntárias. A vergonha então, não é uma virtude, uma vez que as virtudes não têm restrição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ética aristotélica do meio-termo pode ser aplicada não só aos contemporâneos seus, mas também em nossos dias. De fato, atualizando o pensamento do filósofo, podemos nos questionar sobre o ser-ético do nosso tempo. Ao considerar-se o exposto no Livro IV de sua Ética a Nicômaco, percebemos claramente a tendência de nossa sociedade atual em “viver de extremos”. A lógica do consumismo, da lei de mercado, impõe ao homem a prodigalidade, ainda quando este não tem condições para isso. De fato, hoje, ser homem é ser consumidor. Consumir é condição para existir. O gasto, contudo, deve ser egoísta, fazendo valer uma ética individualista e hedonista a qualquer preço. Neste contexto há pouco espaço para ações nobres como a caridade, que passam a ser vistas como algo excessivamente sentimental e piegas. Devemos considerar ainda, que o orgulho e a arrogância muitas vezes nascem da prodigalidade ou da avareza. A exclusão social que vivenciamos em nosso dia-a-dia basta para demonstrar essa tese.
E como manter o bom-humor em época de crise econômica? Suicídios ocorrem por todo o mundo em tempos de crise de capital e ninguém se envergonha disso. Vergonha, aliás, é algo inexistente na elite governante. Não porque tenha alcançado as virtudes da bondade e da justiça como coloca Aristóteles, mas porque não consideram erro perpetuar um sistema social de vícios e exploração que já nasceu morto e continua a coroar a morte como prêmio da indiferença. Honra? Honrado é o trabalhador que sofre de sol a sol na labuta diária para ganhar um pão para o dia seguinte. Esse pobre homem pobre, porém, sofre também de amnésia – ou de ignorância, o que é mais provável – do que seja honra e sonha deixar “essa vida” ganhando na Megasena ou uma outra das tantas loterias que circulam por aí para poder enfim “parar de trabalhar”. É, de fato, trabalho não é visto como coisa boa porque, do modo como se dá no Brasil, baseado na exploração e por vezes, até na humilhação do trabalhador, não é honroso, mas vergonhoso. Sim, aqui trabalho é sinônimo de vergonha. Vale a lógica do consumo e do bem-viver. Mas isso é para aqueles que podem. Talvez o jeito seja “virar” político, esses que ganham muito e não trabalham, que são pródigos ao gastar o dinheiro público em benefício próprio, e avaros na hora de devolver ao povo o seu imposto em forma de melhorias sociais. É de se imaginar o que pensaria Aristóteles da nossa pólis. Mas, talvez, o pior vício do brasileiro seja a pacatez… A irascibilidade é condenada por Aristóteles, mas convenhamos que calma também tem limite.
Benedito Fernando Pereira
Licenciado em Letras, Bacharel em Filosofia, graduando em História, pós-graduando em Ensino de Filosofia pela FACAPA.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Leonel Vallandro, Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1987.