Fazer uma análise filosófica e histórica sobre as cheias dos rios, o que na verdade envolve hoje a realidade de sofrimento de muitas pessoas vitimadas por esse tipo de fenômeno, pode parecer à primeira vista sinal do maior egoísmo e individualismo, um ponto de vista míope de quem só é capaz de ver a beleza do volume excessivo de águas encobrindo vales onde com certeza não se localiza a residência de sua família em particular. Houve todavia um tempo em que as enchentes eram até esperadas com ansiedade, como aquelas do rio Nilo no Egito ou dos rios Tigre e Eufrates na Mesopotâmia, cujo nome significa justamente “entre – rios” (meso + pótamos). É que as cheias levavam novos nutrientes para a terra agriculturável.
         Hoje a idéia comum sobre as enchentes é que a natureza estaria respondendo à irresponsabilidade humana em sua falta de cuidado e desrespeito ao meio ambiente. A questão se reveste então de caráter ético e carrega uma crítica histórica que passa a colocar em dúvida o valor real de todo o caminho traçado pela ideologia racional de progresso como desenvolvimento fatal do homem, um ideal que teria começado no século XVIII (filosofia das luzes) ou mesmo no século XIV (renascimento ou transição da Idade-média para a Idade-moderna).

         Precisamos dos rios perto das cidades para garantir seu abastecimento, mas ocupamos inadvertidamente todas as áreas disponíveis atraídos irresistivelmente pela valorização imobiliária dos terrenos. Por isso ficamos decepcionados com toda a maravilha técnica que o desenvolvimento tornou possível, pois achamos que as soluções de engenharia deveriam vencer a brutalidade dos fenômenos naturais. Parece inconcebível no mundo de hoje enchentes descontroladas invadirem casas e causarem prejuízos econômicos.
         Para os índios que viviam e transitavam nesse verdadeiro lugar de encontro-das-águas onde hoje está localizada a cidade de Pouso Alegre, nessa baixada onde os rios Sapucaí, Sapucai-mirim e Mandu se encontram, as cheias significavam apenas uma variação natural que não ofendia de maneira nenhuma sua dignidade. Elas apenas determinavam procedimentos diferentes e nunca invadiam as aldeias que se localizavam sempre em áreas logo acima do nível mais alto que as águas podiam atingir mesmo nas maiores cheias.
         O colonizador quando de passagem por essas bandas, sempre fixou também suas primeiras capelas em sítio elevado, às vezes com a intenção de encobrir a existência dos índios, no entanto suas praças nunca foram edificadas muito distante de um rio que lhes servisse de fonte, de alimento e trânsito. As cheias nessa época causavam dificuldades proporcionais às suas empreitadas, como relataram, por exemplo, os cientistas naturalistas alemães Spix e Martius que em sua viagem de 1818-20 tiveram que passar com sua tropa de mulas nadando nessa área entre a Estiva e Santana do Sapucaí, que hoje conhecemos como Pouso Alegre. As dificuldades encontradas no período das chuvas com as cheias dos rios eram tomadas por eles como aviso e provação divina, mas serviam também de teste para sua determinação científico-exploratória, coragem e espírito de aventura. Se sua religião vinculava a ira divina aos obstáculos e sofrimentos impostos ao homem, este devia provar sua humildade e resignação aceitando o mandato divino e enfrentando a situação.
         Agora nós preocupamos sobretudo com os sofrimentos pessoais e com os prejuízos materiais e não aceitamos mais o fenômeno das enchentes como fatalismo, destino ou provação divina. Vemos como causas das cheias, que passaram hoje a ser negativas pela ocupação imobiliária das áreas que na verdade sempre estiveram sujeitas à inundação periódica, a interferência não racional do homem sobre a natureza. Lançamos a culpa das enchentes não ao nosso pecado original e ignorado como acontecia antes, mas à negligência do Estado tecnocrático cujo poder deveria garantir a nossa segurança. Todo o poder nós ainda colocamos na ciência racional e na política do dinheiro capaz de financiar soluções de engenharia que na verdade, cada vez mais interferem no meio ambiente, alterando e criando desequilíbrios sempre maiores. O importante é termos explicações científicas para satisfazer o cidadão que sobretudo deseja fazer parte ou emancipar-se ao status maravilhoso de consumidor.
         A análise racional e tecnocrática do fenômeno das enchentes, que como vimos se reveste hoje de exigências éticas, somente reafirma a postura histórica frente ao falso ideal de progresso. Se para o homem foi frustrante a antiga crença em Deus como motivador e solucionador dos nossos problemas humanos, o que nos levou a acreditar mais em nós mesmos como responsáveis pelo nosso “destino” aqui na terra, por outro lado, apostar todas as fichas na razão humana e sua ciência tecnológica parece que também não foi a melhor solução. Era fácil quando apenas Deus era o responsável, pois Ele tinha lá suas razões que não se discutiam. Agora Deus não tem mais nada a ver com as enchentes dos rios, a natureza está separada de Deus, o homem não é mais a grande preocupação de Deus, mas está se tornando uma preocupação muito grande para si mesmo.


[MS. Paulo Araújo de Almeida]
Mestre em Patrimônio histórico e Cultural
Coordenador do GEFO (Grupo de Estudos em Filosofia Oriental de Pouso Alegre – MG).