Entrevista – Umberto Eco
Em Outubro passado, Umberto Eco serpenteava pelos labirintos da Feira do Livro de Frankfurt com uma beata de cigarro apagada a pender dos lábios, como um lúgubre chupa-chupa. Tratava-se de um protesto mordaz ao recentíssimo anti-tabagismo vigente. Um mês antes, a Alemanha era um dos raros países da UE onde ainda podia fumar-se até em comboios. Daí o incongruente ar ensimesmado do semiólogo-romancista, em tantos aspectos um italiano típico – os italianos não se limitam a falar pelos cotovelos: fazem-no como se tivessem uma batuta invisível na mão.
Aos 75 anos, é redundante assinalar o prestígio de Eco. Em Itália, é consensualmente considerado o herdeiro de Benedetto Croce – uma espécie de mentor e consciência da nacionalidade. Tanto que, em 1992, foi dele a palavra definitiva sobre a “Operação Mãos Limpas”, que meteu na cadeia 300 personalidades públicas, entre deputados e senadores, e levou à renúncia nove ministros. “Eis o nosso 14 de Julho de 1789”, sentenciou Eco. Em 2005, foi eleito pela revista inglesa “Prospect Magazine” o segundo intelectual vivo mais influente do planeta (desgraçadamente, o destrambelhado Noam Chomsky, um Michael Moore alfabetizado, ficou em primeiro).
Director da Escola Superior de Ciências Humanas da Universidade de Bolonha (a mais antiga do mundo), está a lançar simultaneamente em 20 línguas o tratado “História do Feio”, uma espécie de outro lado da moeda de “História da Beleza”, de 2004. A meu ver, ambos correspondem a uma réplica muito tardia (mas inexorável) à acusação lançada a São Tomás de Aquino, de não reflectir sobre a estética, especialmente sobre o belo. Ora, toda a primeira fase da ensaística de Eco é devotada àquele doutor da Igreja…
PAULO NOGUEIRA: Porquê agora um livro sobre o Feio? Uma questão de simetria – portanto, de Beleza?
ECO: (Risos) Nem por isso… A resposta previsível seria a de que a minha dissertação de douramento foi sobre a estética, e a beleza e a fealdade são o meu trabalho. Por outro lado, uma resposta mais pormenorizada é a de que, em 1961, iniciei “A História da Beleza” para o meu editor (Bompiani), e a minha assistente era a rapariga com que depois casei, Renate Ramge. Então, e como frequentemente acontece nas editoras, por razões orçamentais decidiram suspender a elaboração da obra. Meti os meus ficheiros numa gaveta e desposei Renate. Quarenta anos mais tarde, um amigo que produz CD-ROMs pediu-me a sugestão de um tópico para um novo projecto, e propus-lhe “A História da Beleza”, de modo a reabrir aquela gaveta, mesmo que após quatro décadas toda a investigação tivesse de recomeçar da estaca zero. Passado algum tempo, a Bompiani resolveu transformar o CD num livro e – contrariando todos os prognósticos – um dispendioso volume sobre arte se tornou um sucesso e foi traduzido para 27 idiomas. O editor solicitou-me em seguida um novo livro do mesmo género. Respondi-lhe: “Ouça, ‘A História da Beleza’ vendeu tanto por causa do seu título apelativo, independentemente do conteúdo. E não há outro título tão apelativo”. Pouco depois, porém, ocorreu-me a ideia de virar a coisa toda de pernas para o ar, e exclamei: “A História do Feio!” Foi assim que tudo aconteceu, sem tirar nem pôr. Subsequentemente, descobri como era excitante explorar o imenso continente da Fealdade.
Considere que, ao longo da história, houve infinitas teorias da Beleza, mas muito poucas teorias da Fealdade. Tratou-se de uma das experiências mais emocionantes da minha vida. No caso da Beleza, bastava examinar os filósofos que a definiram, e a antologia era fácil de compilar. Com a Fealdade, na medida em que existiam tão escassos textos, foi necessário desbravar um imenso território de descrições literárias de experiências com o feio, e a pesquisa acabou por ser bastante divertida.
PN: As definições da fealdade parecem ter mudado no curso dos séculos. O senhor tem a sua própria?
ECO: Não. Caso contrário, este livro seria ou inútil ou redundante. Como a noção da Beleza, a da fealdade varia consoante as eras, e de cultura para cultura. No que diz respeito a Beleza, certos aspectos básicos permaneceram constantes (ao menos na tradição Ocidental): por exemplo, a ideia de que a experiência da Beleza requer sempre um certo distanciamento, no sentido de que o objecto deve ser contemplado sem qualquer anseio de posse ou consumo. Ora, se a Fealdade consistisse simplesmente no oposto da Beleza, diríamos que aquela suscita mais envolvimento emocional. O que até é correcto para aquilo que é repelente, repugnante ou obsceno, mas podemos também experimentar a Fealdade em situações cómicas ou grotescas, nas quais o objecto ou a pessoa feias são contempladas com curiosidade ou divertimento, sem qualquer sensação de rejeição. Pense nos Sete Anões da Branca de Neve; em comparação com George Clooney são certamente feios, mas consideramo-los deveras simpáticos. A noção de Fealdade abarca mais fenómenos do que a de Beleza. Por esta razão, para mim foi mais interessante editar este livro do que o anterior.
PN: Dir-se-ia que os monstros sempre existiram, dos demónios marinhos dos Gregos Antigos aos filmes de terror contemporâneos. Há algum de comum entre eles?
ECO: Uma das mais clássicas definições da Beleza fala diz que as suas características são a proporção e a integridade – e integridade significa que um objecto acima de tudo deve apresentar todos os aspectos que cada objecto da sua respectiva espécie apresenta. Neste sentido, uma pessoa mutilada jamais era considerada bela, um anão era demasiado pequeno e um gigante demasiado grande para serem “normais”. Assim, em todas as culturas, os monstros ou não tinham o que deveriam ter (como o monocular Cíclope), ou tinham em excesso (duas cabeças, inúmeros braços, e assim por diante). Mas isso não quer dizer que os monstros foram sempre considerados repulsivos. Muitos deles foram considerados feios porém interessantes, e a Idade Média inteira sustentou que eles participavam da harmonia universal. Com frequência, foram mesmo encarados como símbolos benevolentes de valores e virtudes espirituais. Em geral, os monstros tendiam a expressar o gosto humano pelo Maravilhoso.
PN: O senhor não aprofunda o conceito de Fealdade nas culturas não-Ocidentais – asiáticas ou africanas, por exemplo. Alguma razão especial?
ECO: Adoptei o mesmo critério usado n’A História da Beleza. É bastante difícil afirmar que algo que nos parece feio inspira o mesmo efeito num membro de outra cultura. Para a cultura ocidental, podemos comparar imagens artísticas ou descrições literárias com textos teóricos, e concluímos se naquela época um dado objecto ou uma determinada pessoa eram considerados feios ou não. Muitas vezes o contexto histórico ou a referência a outros textos pode auxiliar-nos: por exemplo, é evidente que se um quadro representa a Paixão de Jesus os seus flageladores são seguramente concebidos como feios. Não dispomos de garantias semelhantes nos casos oriundos de outras culturas.
PN: Admite que, no curso da história, o feio tem sido tão apaixonante para os artistas como o belo – ou até mais?
ECO: Ao colectar material visual ou literário para a minha antologia, fiquei com a sensação de que as representações das coisas belas seguiram sempre um certo cânone, deixando um espaço limitado para a imaginação do artista. Com o Feio, os artistas podem ser mais inventivos. Tente imaginar a descrição literária de uma mulher bela: depois de enaltecer os olhos, o perfil, os lábios ou os cabelos, resta muito pouco a acrescentar (excepto no caso em que o escritor não descreve simplesmente qualidades físicas, mas sugere uma espécie de misterioso glamour, ou um apelo impalpável). Pelo contrário, na representação do horrível e do repugnante a fantasia do artista pode ter rédea solta. A Beleza tem limites canónicos. A Fealdade é ilimitada nas suas possibilidades.
PN: Existem belas representações artísticas do Feio. Há uma diferença entre a Fealdade na arte e a Fealdade na natureza?
ECO: Devemos sempre distinguir entre ambas. Um mau artista pode fazer uma horrível representação de Vénus, assim como um grande artista pode representar Polifemo esplendidamente. Do mesmo modo, eu não convidaria uma mulher de Rubens para jantar, mas reconheço que do ponto de vista artístico elas são muito belas. Na história da arte há fascinantes representações ou criações de seres monstruosos – basta pensar em Hieronymus Bosch.
(Entrevista publicada no caderno Atual do semanário Expresso)
Ps: Foi mantido a versão original.