O amor como lugar
Desmentindo a suposta crise da psicanálise, as intuições centrais de Freud adquirem somente agora seu pleno valor. Como a ética lacaniana pode nos orientar diante das inúmeras escolhas morais da atualidade?
Nestes últimos anos, uma nova onda triunfante proclama a morte da psicanálise: graças aos avanços recentes das neurociências, aí está ela, relegada ao lugar onde desde sempre pertenceu, no quintal pré-científico e obscurantista da busca dos sentidos ocultos, em companhia dos confessores religiosos e dos decifradores dos sonhos. Como disse Todd Dufresne, ninguém na história do pensamento humano esteve tão enganado sobre seus postulados fundamentais – com exceção de Marx, acrescentariam alguns, sem dúvida. E, de fato, como se poderia prever, em 2005, o lamentavelmente célebre Livro negro do comunismo, somando todos os crimes do comunismo, foi seguido do Livro negro da psicanálise, enumerando todos os erros teóricos e todas as manipulações clínicas da psicanálise. Nesse sentido negativo, pelo menos, a solidariedade profunda entre o marxismo e a psicanálise agora é mostrada aos olhos de todos.
Há algo de verdadeiro nessa oração fúnebre. Há um século, Freud situava a psicanálise na série de três humilhações sucessivas do homem, as três “feridas narcísicas”, como ele denomina. Em primeiro lugar, Copérnico demonstrou que a Terra girava em torno do Sol e nos privou conseqüentemente, a nós, humanos, do lugar central no universo. Em seguida, Darwin demonstrou que éramos o produto de uma evolução cega, privando-nos assim de nosso lugar privilegiado entre as criaturas vivas. Enfim, quando o próprio Freud tornou visível o papel predominante do inconsciente nos processos psíquicos, tornou-se claro que nosso eu não é nem mesmo senhor em sua própria morada. Hoje, cem anos mais tarde, uma outra imagem aparece: as últimas descobertas científicas parecem infligir toda uma série de humilhações suplementares à imagem narcísica do homem: nosso próprio espírito não é nada além do que uma máquina de calcular e de produzir séries de dados, sendo nosso sentido da liberdade ou da autonomia simplesmente “ilusões do utilizador” dessa máquina… Conseqüentemente, aos olhos das neurociências atuais, a própria psicanálise, longe de ser subversiva, parece pertencer mais ao campo humanista tradicional ameaçado pelas últimas humilhações.
Morte da psicanálise?
A psicanálise está realmente ultrapassada? A resposta parece ser sim, em três níveis conectados entre si: 1) o nível do saber científico, onde o modelo cognitivista-neurobiológico do espírito humano parece suplantar o modelo freudiano; 2) o da clínica psiquiátrica, onde o tratamento psicanalítico perde seu espaço rapidamente em relação às terapias clínicas e à terapia comportamental; 3) o do contexto social, onde a imagem de uma sociedade de normas sociais que reprimem as pulsões sexuais do indivíduo não parece mais válida aos olhos da permissividade hedonista que predomina hoje em dia. Entretanto, no caso da psicanálise, o serviço fúnebre talvez seja um pouco precipitado. Em oposição às verdades “evidentes” dos críticos de Freud, é preciso afirmar que o tempo da psicanálise chegou somente agora e que as intuições centrais de Freud também adquirem somente agora seu pleno valor.
Um dos lugares-comuns da crítica cultural conservadora é que, em nossa época permissiva, faltam às crianças limites rígidos ou interdições. Essa falta causa frustrações a elas, levando-as de um excesso a outro. Só um limite rígido instituído por uma autoridade simbólica pode garantir não somente a estabilidade, mas a satisfação mesma (a satisfação trazida pela violação do proibido, pela transgressão dos limites). A fim de tornar claro o modo pelo qual a denegação funciona no inconsciente, Freud evocava a reação de um de seus pacientes a um sonho centrado em torno de uma mulher desconhecida: “Quem quer que seja esta mulher em meu sonho, eu sei que não é minha mãe”. Uma clara prova negativa, segundo Freud, de que aquela mulher era sua mãe. Não há modo melhor de caracterizar o paciente típico de hoje do que imaginar sua reação oposta ao mesmo sonho: “Quem quer que seja esta mulher em meu sonho, tenho certeza que ela tem algo a ver com minha mãe!”
Em nenhuma parte esse papel paradoxal da psicanálise é mais claro que no caso dos sonhos. Se pedirmos a um intelectual médio hoje para nos dizer resumidamente do que fala a teoria dos sonhos de Freud, ele responderia provavelmente: para Freud, um sonho é a realização fantasmática de algum desejo inconsciente e censurado por quem sonha, que é, em princípio, de natureza sexual. Agora, tendo essa definição em mente, voltemos ao início de A interpretação dos sonhos, quando Freud procura uma interpretação detalhada de seu sonho acerca da “injeção aplicada em Irma” – é razoável supor que Freud sabia o que ele estava fazendo e que escolheu cuidadosamente um exemplo apropriado para introduzir sua teoria dos sonhos. Entretanto, é aqui que encontramos a primeira grande surpresa: a interpretação desse sonho por Freud não pode nos deixar de lembrar uma antiga piada soviética que passava na Rádio Erevan (“É verdade que Rabinovitch ganhou um carro novo pela loteria nacional?” “Em princípio sim, ganhou. Só que não era um carro, mas uma bicicleta e não era nova, mas usada e ele não ganhou, roubaram dele!”): o sonho é a realização do desejo sexual inconsciente daquele que sonha? Em princípio, sim. Só que o desejo no sonho que Freud escolheu para demonstrar sua teoria dos sonhos não é nem sexual, nem inconsciente e, ainda mais, não é nem mesmo seu…
Dois sonhos
O sonho começa por uma conversa entre Freud e sua paciente Irma sobre o fracasso de seu tratamento devido a uma injeção infectada. No curso da conversa, Freud se aproxima dela, inclina-se em direção a seu rosto e olha para o interior de sua boca, confrontando-se com uma visão horrível de uma carne vermelha viva. Neste ponto de horror insuportável, a tonalidade do sonho muda, e o horror de repente se transforma em comédia: três médicos, amigos de Freud, aparecem enumerando, num jargão pseudo-profissional ridículo, as múltiplas razões (que mutuamente se excluem) pelas quais o envenenamento de Irma pela injeção infectada não foi culpa de ninguém (não houve injeção; a injeção estava limpa…). Assim, o desejo do sonho, o “pensamento latente” exprimido nele, não é nem sexual, nem inconsciente, mas é o desejo (plenamente consciente) de Freud de obliterar sua responsabilidade no fracasso do tratamento de Irma. Como, conseqüentemente, isso concorda com a tese da natureza sexual e inconsciente do desejo expresso nos sonhos?
É aqui que é preciso introduzir uma distinção crucial: o desejo inconsciente do sonho NÃO é o pensamento latente do sonho que é deslocado/traduzido na textura explícita do sonho, mas o desejo inconsciente que se inscreve através da distorção mesma do pensamento latente na textura explícita do sonho. Aí reside o paradoxo do Traumarbeit (o trabalho do sonho): queremos nos desembaraçar de um pensamento insistente, mas incômodo, do qual somos plenamente conscientes, então nós o distorcemos e o traduzimos no hieróglifo do sonho. No entanto, é através da própria distorção desse sonho-pensamento que um outro desejo, bem mais fundamental, se inscreve no sonho, e esse desejo é inconsciente e sexual.
É preciso acrescentar uma complicação suplementar aqui: por que exatamente nós sonhamos? A resposta de Freud é falsamente simples: a função última do sonho é de permitir àquele que sonha prolongar seu sono. Interpreta-se geralmente essa resposta em relação aos sonhos que temos justamente antes de despertarmos, quando alguma perturbação exterior (barulho) ameaça nos despertar. Nessa situação, quem está dormindo imagina rapidamente (durante o sonho) uma situação que incorpora esse estímulo exterior e consegue, assim, prolongar o sono por um tempo. Quando o sinal exterior torna-se forte demais, ele finalmente desperta… Mas será que as coisas são verdadeiramente tão simples assim? Num outro sonho acerca do despertar n’A interpretação dos sonhos, um pai cansado, que havia passado a noite velando o caixão de seu jovem filho, adormece e sonha que seu filho se aproxima dele em chamas, dirigindo-lhe esta censura assustadora: “Pai, você não vê que estou queimando?” Logo após, o pai acorda e descobre, por causa da queda de uma vela, que o tecido do sudário de seu filho morto pegou realmente fogo – a fumaça que ele sentiu durante seu sono incorporou-se ao sonho onde seu filho estava em chamas para prolongar seu sono. Mas será que o pai realmente acordou quando o estímulo exterior (a fumaça) se tornou forte demais para ser contido nos limites do roteiro do sonho? Não seria o inverso? O pai construiu primeiramente o sonho a fim de prolongar seu sono, isto é, para evitar o desagradável despertar? No entanto, o que ele encontra no sonho (literalmente a questão ardente, o espectro inquietante de seu filho censurando-lhe) é bem mais insuportável do que a realidade exterior e, então, o pai acorda, escapa para a realidade exterior. Por quê? Para continuar a sonhar, para evitar o trauma insuportável de sua própria culpa na morte dolorosa de seu filho.
A fim de tomar a medida exata do sentido completo desse paradoxo, é preciso comparar este sonho com aquele sobre a injeção aplicada em Irma. Nos dois sonhos, há um encontro traumático (o olhar da carne nua da garganta de Irma; a visão do filho em chamas). Contudo, no segundo sonho, aquele que sonha acorda na mesma hora, enquanto que, no primeiro sonho, o horror é substituído pelo espetáculo louco das desculpas profissionais. Esse paralelo nos dá a chave última da teoria dos sonhos de Freud: o despertar no segundo sonho (o pai acordando para a realidade a fim de escapar do horror do sonho) tem a mesma função que a súbita transformação em comédia, a mesma função que essa troca entre nossos três médicos ridículos do primeiro sonho. Ou seja, nossa realidade ordinária tem precisamente a estrutura de uma troca louca que nos permite evitar o encontro com o verdadeiro trauma.
Adorno já disse que a máxima nazista bem conhecida “Deutschland, erwache!” (Alemanha, desperta-te!) significava, de fato, seu exato oposto; quer dizer, a promessa de que, se você respondesse ao chamado, estaria autorizado a continuar a dormir e a sonhar (a evitar o encontro com a realidade do antagonismo social). O trauma que encontramos no sonho é, assim, de certo modo, bem mais real do que a própria realidade (social exterior). Um poema de Primo Levi relata o destino de uma lembrança traumática herdada da vida no campo de concentração. Na primeira estrofe, Levi está no campo, adormecido, tendo sonhos intensos: voltando ao lar, comendo, contando à sua família sua experiência quando, de súbito, ele é despertado pelo grito cruel do soldado polonês: “Wstawac!” (De pé! Levanta-te!). Na segunda estrofe, ele está em casa, após a guerra e a libertação. Assim, sentado à mesa em sua casa, bem alimentado, ele conta sua história à sua família quando, de súbito, o chamado emerge violentamente em seu espírito “Wstawac!”…
É crucial aqui, com certeza, a inversão da relação entre o sonho e a realidade nas duas estrofes: seu conteúdo é formalmente o mesmo (as cenas agradáveis do repouso no lar, da refeição e da narração aos seus próximos são interrompidas pela intrusão da injunção “De pé!”). Mas a tranqüilidade do sonho, na primeira estrofe, é cruelmente interrompida pela realidade da ordem, enquanto que, na segunda estrofe, a agradável realidade social é interrompida pela ordem brutal alucinada (ou, antes, imaginada). Essa inversão exprime bem o enigma da Wiederholungszwang: por que o sujeito continua sendo assombrado pela ordem brutal e obscena “Wstawac!”? Por que a injunção insiste e se repete? Se, na primeira vez, vemos a simples intrusão da realidade exterior que perturba o sonho, no segundo caso, vemos a intrusão do Real traumático que atrapalha o funcionamento tranqüilo da própria realidade social. Seguindo o roteiro um pouco modificado do segundo sonho de Freud, podemos facilmente imaginar assistir ao sonho do sobrevivente da Shoah em que seu filho (que ele foi incapaz de salvar do forno de cremação) voltou a assombrar após sua morte, dirigindo-lhe esta censura: “Vater, siesht du nicht dass ich verbrenne?”
Ciberespaço e três versões da ética
Descobrimos então um Freud distante daquele vitoriano proverbial tomado de uma visão repressiva da sexualidade, um Freud cuja atualidade esteja chegando apenas hoje, em nossa “sociedade do espetáculo”, quando aquilo que experimentamos como realidade cotidiana torna-se cada vez mais a mentira encarnada. Basta lembrar os jogos interativos do ciberespaço nos quais alguns de nós brincam compulsivamente, jogos nos quais geralmente um neurótico covarde se transforma em (ou melhor, adota o personagem do) macho agressivo, batendo em outros homens e violentando as mulheres. É muito fácil dizer que esse ser covarde encontra seu refúgio no sonho acordado do ciberespaço a fim de escapar de sua vida real calma e impotente. Mas, e se os jogos do ciberespaço fossem mais sérios do que geralmente pensamos? E se eu pudesse exprimir por eles o núcleo agressivo e perverso da minha personalidade que, em razão das restrições ético-sociais, eu não seria capaz de vivenciar em minhas trocas reais, da vida real, com os outros?
Nesse caso, o papel que enceno em meus sonhos acordados do ciberespaço não é de certa forma “mais real do que a realidade”, mais próximo do verdadeiro núcleo da minha personalidade do que o papel que desempenho em minhas trocas com meus parceiros na vida real? É exatamente porque estou consciente de que o ciberespaço é “apenas um jogo” que posso viver nele aquilo que eu nunca poderia admitir em minhas trocas intersubjetivas “reais”. Nesse sentido, como diz Jacques Lacan, a Verdade tem a estrutura de uma ficção: o que aparece como sonho ou mesmo como sonho acordado é às vezes uma verdade escondida cuja repressão estrutura a própria realidade social. É aí mesmo que reside a última lição de A interpretação dos sonhos, de Freud: a realidade destina-se àqueles que não podem suportar o sonho.
Que tipo de ética corresponde a essa constatação? A resposta de Lacan fornece o seu lema: “A única coisa da qual alguém possa ser culpado, ao menos na perspectiva analítica, é de ter cedido em seu desejo”. Esse lema, aparentemente simples e claro, torna-se difícil de entender no momento em que se busca especificar sua significação – de que maneira ele se situa diante da panóplia de escolhas éticas que estão disponíveis hoje em dia? À primeira vista, ele parece concordar com três versões principais: o hedonismo tolerante liberal, o “budismo ocidental”, e a ética imoral. Examinemos cada uma dessas posições.
A primeira coisa que se deve afirmar categoricamente é que a ética lacaniana não é uma ética hedonista: qualquer que seja o significado de “não ceder em seu desejo”, isso não significa o reino incontrolado daquilo que Freud chamava de “princípio de prazer”, o funcionamento do aparelho psíquico para atingir o prazer. De fato, para Lacan, o hedonismo é o modelo de um desejo adiado pelo interesse de “compromissos realistas”: a fim de atingir um maior volume de prazer, devo calcular e economizar, sacrificar prazeres a curto prazo em troca de prazeres mais intensos a longo prazo. Não há solução de continuidade entre o princípio de prazer e sua contrapartida, o “princípio de realidade”: o segundo (obrigando-nos a levar em conta os limites da realidade que se opõem ao nosso acesso imediato aos prazeres) é o prolongamento inerente do primeiro.
Mesmo o budismo (ocidental) não escapa dessa armadilha; o próprio Dalai Lama sempre afirma que “o objetivo da vida é ser feliz” – o que é falso para a psicanálise, é preciso acrescentar. Na descrição de Kant, o dever moral funciona como o intruso, traumático e estranho, que perturba do exterior o equilíbrio homeostático do sujeito. Sua pressão insuportável obriga o sujeito a agir “para além do princípio do prazer”, ignorando a busca dos prazeres. Para Lacan, essa mesma descrição vale para o desejo, razão pela qual o gozo não é alguma coisa que vem naturalmente para o sujeito, enquanto realização de suas potencialidades internas, mas é o conteúdo de uma injunção traumática do supereu.
A ética lacaniana é imoral?
Se o hedonismo deve ser rejeitado, então a ética lacaniana corresponde a uma versão da ética heróica imoral, aquela que exige permanecer fiel apenas a si próprio, a persistirmos no caminho que escolhemos para nós mesmos, para além do bem e do mal? Lembremos de Don Giovanni no último ato da ópera de Mozart, quando o Comendador de pedra exige dele uma decisão: Don Giovanni está às portas da morte, mas se ele se arrepender de seus pecados, ainda poderá ser salvo; se, ao contrário, ele não renunciar à sua vida de pecador, queimará no inferno para sempre. Heroicamente, Don Giovanni recusa arrepender-se, embora esteja totalmente consciente de que, com sua teimosia, não tem nada a ganhar a não ser sofrimentos para o resto da vida. Por que ele faz isso? Evidentemente, não é por alguma vantagem ou por algum prazer no futuro. A única explicação é sua total fidelidade à vida devassa que escolheu para si. É um caso claro de ética imoral: a vida de Don Giovanni sempre foi imoral; porém, como prova sua fidelidade a si próprio, não foi imoral por prazer ou vantagem, mas por princípio. Agiu desse jeito porque isso fazia parte de uma escolha fundamental. Ou, para tomar outro exemplo do mundo da ópera: Carmen, de Bizet. Carmen é certamente imoral (uma devassa que se lança a aventuras sem piedade, destruindo a vida dos homens e arruinando as famílias), mas completamente ética (fiel ao caminho que escolheu para si mesma até o fim, mesmo quando isso significa sua morte).
Friedrich Nietzsche (grande admirador de Carmen) foi o grande filósofo da ética imoral, e é preciso sempre lembrar que o título da obra-prima de Nietzsche é Genealogia da moral, e NÃO da ética. São coisas bem diferentes. A moral está preocupada com a simetria das minhas relações em relação a outros seres humanos; sua regra de base é “não faça aos outros aquilo que não gostaria que lhe fizessem”. A ética, ao contrário, exige que eu seja conseqüente comigo mesmo, fiel ao meu próprio desejo até o fim. Na capa da edição de 1939 de Materialismo e empiriocriticismo, de Lênin, Stálin escreveu a seguinte nota com caneta vermelha:
1 – Fraqueza
2 – Indolência
3 – Estupidez
São as únicas coisas que podemos chamar de vícios. Todo o resto, na ausência dos traços supramencionados, é sem dúvida virtude.
PS: se um homem é 1) forte (espiritualmente), 2) ativo, 3) inteligente (ou capaz), então ele é bom, pouco importam todos os demais “vícios”!
1) + 3) = 2)
Essa é a fórmula mais concisa que se pode ter da ética imoral; no lado oposto disso, um ser fraco que obedece às regras morais e fica preocupado com suas falhas, encarna a moral não ética, que é o alvo da crítica nietzschiana do ressentimento. Mas o stalinismo aqui tem seus limites: não tanto porque é imoral em excesso, mas porque é secretamente moral, e porque sempre repousa sobre a figura de um grande Outro. Naquela que é talvez a legitimação mais inteligente do terror stalinista, Humanismo e terror, obra de 1946 de Maurice Merleau-Ponty, o terror se justificaria como uma espécie de aposta no futuro, quase do mesmo modo pelo qual a teologia de Blaise Pascal nos exorta a fazer uma aposta em Deus: se o resultado final do horror presente revelar-se a glória do comunismo no futuro, então esse resultado perdoará retroativamente todas as coisas terríveis que um revolucionário deve executar agora.
Seguindo um raciocínio parecido, alguns stalinistas, quando (em comitê restrito, geralmente) eram obrigados a admitir que muitas das vítimas dos massacres eram inocentes, que foram acusadas e assassinadas porque “o partido tinha necessidade do sangue delas para fortalecer sua unidade”, esses stalinistas sonhavam com o dia da vitória final em que todas as vítimas necessárias seriam recompensadas, em que seriam reconhecidos ao mesmo tempo sua inocência e seu enorme sacrifício pela Causa. Lacan refere-se a isso em seu seminário sobre A ética, como a “perspectiva do julgamento final”, perspectiva ainda mais claramente discernível em uma das expressões-chave do discurso stalinista, aquela da “culpabilidade objetiva” e da “significação objetiva” de nossos atos: ainda que o indivíduo seja honesto, agindo com suas mais sinceras intenções, ele será “objetivamente culpado” se os seus atos servirem às forças reacionárias – e, obviamente, apenas o partido possui acesso direto àquilo que os atos “significam objetivamente”. Aqui, obtém-se não apenas a perspectiva do julgamento final (que determina a “significação objetiva” do ato), mas também a instância que já dispõe da capacidade exclusiva de julgar os acontecimentos e os atos atuais, a partir dessa mesma perspectiva.
Kant contra Eichmann: o fim do “julgamento final”
Agora podemos ver porque a máxima de Lacan – “não existe grande Outro” – nos leva ao núcleo do problema da ética: o que ela exclui é precisamente essa “perspectiva do julgamento final”, a idéia de que em algum lugar – mesmo que seja um ponto de referência inteiramente virtual, mesmo que concordemos que não é possível ocupar esse lugar e emitir o julgamento final – deve haver uma forma padronizada que nos permita tomar a medida de nossos atos e formular seu “sentido verdadeiro”, seu verdadeiro estatuto ético. Mesmo a noção de “desconstrução como justiça”, da qual fala Jacques Derrida, parece repousar sobre uma esperança utópica sustentando o espectro da “justiça infinita”, sempre adiada, sempre colocada no futuro, mas ao mesmo tempo desde já presente enquanto horizonte último de nossa atividade.
A aspereza da ética lacaniana é que ela exige de nós o abandono completo dessa referência. Sua aposta suplementar é que essa abdicação não vai nos lançar à insegurança ética ou ao relativismo, não vai destruir os fundamentos da atividade ética. Mais do que isso, sua aposta é a de que a renúncia da garantia de algum grande Outro equivale à própria condição de uma ética realmente autônoma. Lembremos que o sonho da injeção em Irma, que Freud usa como um caso exemplar para ilustrar seu procedimento de análise dos sonhos, é um sonho do sujeito da responsabilidade (a responsabilidade de Freud em relação ao fracasso do tratamento de Irma) – esse fato simplesmente indica que a responsabilidade é uma noção freudiana crucial. Mas como concebê-la? Como evitar o erro da percepção comum segundo a qual a mensagem ética fundamental da psicanálise é precisamente aquela que poderia aliviar minha responsabilidade, que colocaria a culpa no Outro “já que o Inconsciente é o discurso do Outro, então não sou responsável por suas formações, pois é o Outro que fala através de mim, sou apenas seu instrumento”? Lacan indica a saída para tal impasse, referindo-se à filosofia de Kant como precursora da ética psicanalítica.
Segundo a crítica tradicional, o limite da ética universalista kantiana do “imperativo categórico” (a injunção incondicional de realizar nosso dever) encontra-se na sua indeterminação formal: a Lei moral não me diz qual é o meu dever, ela me diz simplesmente que devo realizar meu dever, e nesse momento abre espaço para um voluntarismo vazio (o que decido ser meu dever é meu dever). Entretanto, longe de constituir um limite, esse traço nos leva ao núcleo da autonomia ética kantiana: não é possível deduzir da própria Lei moral as normas concretas que devo seguir em minha situação específica – o que significa que o próprio sujeito deve assumir a responsabilidade de traduzir a injunção abstrata da Lei moral em uma série de obrigações concretas. A aceitação plena desse paradoxo nos obriga a classificar toda referência ao dever como simples desculpa: “Sei que isto é difícil e doloroso, mas, afinal, o que posso fazer, é meu dever…”
O lema tradicional do rigor ético é: “Nenhuma desculpa justifica a não realização do seu dever!” Ainda que a máxima conhecida de Kant – Du kannst, denn du sollst (“você pode, porque você deve”) – pareça oferecer uma nova versão desse lema, na verdade ela o complementa com uma inversão muito mais estranha: “Nenhuma desculpa justifica a realização do seu dever!” A própria referência ao dever como desculpa para a realização do meu dever precisa ser classificada como hipócrita.
Lembremos aquele exemplo proverbial do professor severo e sádico que submete seus alunos a uma disciplina violenta e à tortura; a desculpa para si mesmo (e para os outros) é: “Eu mesmo acho muito doloroso maltratar essas pobres crianças, mas que posso fazer, é meu dever!” É isso que a ética psicanalítica proíbe totalmente: nela sou plenamente responsável não apenas por fazer meu dever, mas também – e não menos – por determinar qual é meu dever.
Geralmente se diz que a ética kantiana do dever incondicional justificaria tal atitude – não é surpreendente que o próprio Adolf Eichmann tenha mencionado a ética kantiana quando tentou justificar seu papel no planejamento e na execução da Shoah: ele fazia apenas seu dever e obedecia às ordens do Führer. No entanto, o objetivo da insistência de Kant sobre a plena autonomia moral do sujeito e sobre sua total responsabilidade é precisamente impedir tais manobras que procuram jogar a culpa em alguma figura do grande Outro.
(Tradução: Ronaldo Manzi e Eduardo Socha)
Slavoj Žižek é pesquisador da Universidade de Liubliana (Eslovênia) e da European Graduate School (Suíça), professor visitante da Universidade de Columbia, Princeton, entre outras. Autor de How to read Lacan (Norton,2007), Bem-vindo ao deserto do real (Boitempo, 2003)